domingo, 5 de março de 2017

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Mas se fosse a vós evitaria chamá-lo de “o Santo” na sua presença. Fernando de Castela é bastante susceptível a respeito de certos epítetos, mesmo que inócuos»

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O conde de Nigredo
«(…) O cavaleiro abriu caminho e convidou os três viajantes a deixarem os carros e os cavalos entregues a um moço de estrebaria. Depois, prosseguiram a pé até ao centro do castelo, onde se erguia o torreão. Entretanto a noite caíra e as sentinelas afadigavam-se a acender as tochas em redor do perímetro das muralhas. Os alojamentos de sua majestade são no cimo do torreão, explicou Alarcón. A esta hora, deve estar reunido com os dignitários e o conselho de guerra. Subiram as escadas até ao cimo do torreão. O ambiente era escuro e as paredes de pedra, privadas de qualquer adorno, ostentavam apenas as manchas de fumo impregnadas pelas tochas. Não vos admireis com o desalinho deste lugar, precisou o cavaleiro, reparando nos olhares que os três visitantes cruzavam entre si. Sua majestade raramente se aloja aqui, só por razões militares. Mas estas paredes encerram muita história, remontam aos tempos de Carlos Magno. Vendo bem, interveio Uberto, trocando um olhar de entendimento com Willalme, este castelo não passa de uma cabeça de ponte erguida contra Córdova. É sabido que Fernando de Castela está a planear um ataque decisivo contra o emirado. Os propósitos de reconquista de sua majestade são mais que lícitos. Alarcón devolveu-lhe uma expressão tolerante. Mas se fosse a vós evitaria chamá-lo de o Santo na sua presença. Fernando de Castela é bastante susceptível a respeito de certos epítetos, mesmo que inócuos.
Desculpai a imprudência do meu filho, suspirou Ignazio, escondendo debaixo da barba um risinho satisfeito. Com o passar do tempo, Uberto manifestava certos traços de carácter cada vez mais parecidos com os seus, sobretudo a intolerância com certas formas de autoridade e o gosto por picar quem quer que se lhe submetesse com uma abnegação cega. Mas noutras coisas era bem diferente, o seu olhar e as suas atitudes eram transparentes como a água da fonte, enquanto Ignazio era fugidio e cheio de segredos. A experiência ensinara-o a calar-se perante certos argumentos, especialmente sobre aspectos proibidos do saber. O facto de ter sido enganado no passado quase lhe custara uma acusação de necromancia. Depois do segundo lance de escadas, chegaram a uma antecâmara revestida de tapeçarias e guardada por um ajuntamento de soldados e de criados. Esperai que vos faça anunciar, depois entrai, um de cada vez, sem pressas. Alarcón lançou um último olhar a Uberto, desta vez de aviso. E falai apenas se fordes interpelado. Após uma breve espera, o grupo teve permissão para entrar. O mercador foi o primeiro e, transposta a antecâmara, atravessou com passos medidos um espaço amplo. As paredes ostentavam muitos ícones sacros, em quantidade excessiva, deixando perceber uma devoção quase maníaca.
Fernando III de Castela, um homem com cerca de trinta anos, coberto por um manto de veludo azul e uma túnica aos quadrados, estava sentado no centro da sala. Tinha o cabelo castanho comprido que lhe caía sobre a testa à laia de franja, uma amostra de barba que evidenciava um queixo fugidio e uns olhos celestes perdidos no vazio. Eram várias as personalidades que lhe faziam alas, conselheiros, religiosos, aristocratas. Alarcón tomara lugar entre eles e entretinha-se a conversar com um indivíduo fortemente armado e singular por ter o rosto escondido por um camal que apenas deixava livres duas aberturas para os olhos. Depois de ter reparado em tudo isto, o mercador de Toledo prostrou-se em frente do rei e rendeu-lhe homenagem com o rito do beija-mão. Uberto e Willalme juntaram-se a ele e ajoelharam-se a seu lado. Fernando III entreabriu os lábios, anunciando querer falar, e na sala acabaram os cochichos. Deveis ser, por conseguinte, Ignazio Álvarez. A voz do monarca era baixa, quase fleumática. A vossa reputação tem algo de sensacional. Diz-se que durante a vossa juventude vos recusastes tornar-vos clericus e até magíster, tendo preferido a vida errante. Não negamos a curiosidade que isso nos provoca». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT