segunda-feira, 27 de março de 2017

O Tesouro do Templo. Eliette Abécassis. «Havia ali mil e cem túmulos profanados, com ossadas alinhadas num eixo de norte para sul, em que os esqueletos se achavam estendidos sobre as costas»

jdact e wikipedia

«(…) A sul, Sodoma, destruída pelo fogo celestial, testemunha do cataclismo que, um dia, castigara a região. O cheiro a enxofre e as formas tenebrosas, esculpidas na areia e na rocha, revelam o império da destruição, o princípio do fim. Fora por isso que, dois mil anos antes, os essénios se haviam refugiado neste deserto, que se estende, a leste de Jerusalém, até à grande depressão do Ghor, onde o rio Jordão desagua no mar Morto, um deserto calmo e silencioso no qual se pode crer no fim dos tempos. A sul do nosso deserto, estende-se um outro, e a sul desse um outro ainda, onde Moisés recebeu as Tábuas da Lei. Em cada um desses desertos existem pastores imemoriais, testemunhas dos tempos, e os homens retiram-se do mundo para ir habitar o nosso deserto e deixar-se habitar por ele. Ao meio-dia, cheguei ao local do crime. O calor era sufocante. Passara em frente das grutas onde foram descobertos os restos de cerca de mil manuscritos, alguns remontando ao século III a.C., que tinham pertencido à nossa seita. Fora em 1947 que havia sido encontrado o primeiro jarro e assim começara a estranha história dos manuscritos do mar Morto, a descoberta arqueológica mais extraordinária de sempre. Desde os tempos em que aquele local era visitado em peregrinação, acreditava-se que nada de novo existia sob o solo da Judeia. Ao longo de dois milénios, os homens passavam ao lado daquele tesouro, ignorando que aqueles rolos de manuscritos, milagrosamente conservados em jarros, datavam da época de Jesus e se encontravam escondidos nas grutas de Qumran, em pleno deserto da Judeia, perto do mar Morto, a trinta quilómetros de Jerusalém.
Quando, em 1999, o grande sacerdote Osée, que participara na descoberta, fora encontrado crucificado na igreja ortodoxa de Jerusalém, a minha história pessoal cruzara-se com a dos manuscritos do mar Morto. Fora-lhe roubado um dos rolos e Shimon Delam, comandante do exército israelita, procurara meu pai, para lhe pedir que o ajudasse nas investigações. E eu, Ary, seu filho, havia-o acompanhado. Naquelas mesmas grutas, eu descobrira que, ao longo de inúmeras gerações, homens tinham vivido ali, sem que ninguém o soubesse, guardando e copiando os rolos de pergaminhos que constituíam os seus textos sagrados. Após mais meia hora de caminhada, alcancei a margem do mar Morto, e dirigi-me ao penhasco onde se achavam as ruínas de Khirbet Qumran. O local, selado pela polícia, estava deserto, aquela hora em que o Sol atingia o zénite. Passando por baixo do cordão que cercava o local do crime, avancei até ao cemitério contíguo às ruínas. Meu Deus! Como desejaria não me aventurar naquele vale de lágrimas, como gostaria de poder afirmar: não, não estive aqui, nada sei nem quero saber, nada vi, para não ser forçado a contemplar a terrível visão que se me deparou. Havia ali mil e cem túmulos profanados, com ossadas alinhadas num eixo de norte para sul, em que os esqueletos se achavam estendidos sobre as costas, com as cabeças viradas para sul. Existia ali um vale de ossadas expostas e eu ignorava porquê. Não soprava a menor brisa e, no entanto, parecia-me escutar como que um murmúrio: eram vozes, as vozes dos mortos, que se erguiam, na minha direcção, como se saíssem dos túmulos. As vozes de antepassados, atraídas pela santidade, pela pureza do acto e da intenção, que habitavam o último refúgio das suas aspirações, onde os homens zelavam ardentemente pelo cumprimento da lei de Moisés, onde aqueles essénios, os últimos dos últimos, cuja derradeira morada fora o deserto árido, tentavam, para lá dos seus túmulos, inspirar a Judeia, para que nunca se rendesse. A imensa progenitura de Judá e de Benjamin, tudo fazia por espalhar a mensagem e preservar a história de um povo. Foi então que reparei numa pequena cruz, perto de um aglomerado de pedregulhos e, quando ergui a cabeça, avistei o altar de pedra, erigido no meio do cemitério profanado, onde se procedera ao sacrifício. Uma faixa de plástico vermelho contornava-o e fora traçada, com giz branco, a silhueta de um homem. Tinham-lhe atado os pés e as mãos, antes de o matar, e degolado, como se fosse um cordeiro, em cima do altar, e sacrificado pelo fogo, que lançara o odor infame daquele homem em direcção ao Senhor. Havia sido necessário amarrá-lo firmemente, de modo a que ficasse completamente imobilizado e com o corpo retorcido, antes de lhe segurarem, com força, o pescoço e de lhe abrirem com um punhal de lâmina afiada. Fora preciso deixar que o seu sangue escorresse, a sua carne ardesse, até o fumo se elevar no ar. Por baixo, viam-se vestígios do lume, cinzas a toda a volta e, no altar, sete marcas de sangue». In Eliette Abécassis, O Tesouro do Templo, 2001, tradução de Catarina Lima, Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora Livros do Brasil, Colecção Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.

Cortesia de CL/ELBrasil/JDACT