sexta-feira, 10 de março de 2017

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «… uma tese sobre a minha contribuição para o estudo da canção nacional espanhola e que se comovia cada vez que eu murmurava: este niño se lleva la flor. Que los otros no»

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«(…) Ainda que este tipo de encontros livres tivessem praticamente desaparecido nos últimos cinco anos e eu retivesse como uma sombra do meu amor-próprio os semifracassos sexuais dos últimos congressos: Leyden, Madrid, Montpellier, que me tinham obrigado a interpretar perante o doutor Buscarons o estúpido papel de marido septuagenário escassamente atraído, já, pela sua própria esposa e necessitado de uma sexualidade bioquímica. Viagra, disse ele, enquanto o seu cérebro procurava contra-indicações e não as encontrava. Não. Não és cardíaco. Não. Não sou. E receitou-me Viagra quarenta e oito horas antes de partir para a Galiza, um tesouro de comprimidos romboidais escondido na minha carteira. Um comprimido meia hora antes mais ou menos da previsão da situação sexual e relaxação mental, como antes, dissera-me Buscarons, como se antes fosse o tudo e agora o nada. Também não era assim. O meu cérebro deseja, mas ainda não o faz a partir da derrotada percepção do ancião no qual sobrevive o desejo e não a potência, mas sim da angústia do homem que necessita uma transfusão de mulher e pressente que já não seria fácil para ele procurá-la entre as mulheres jovens e sobretudo novas, à maneira das terras virgens que propiciam a tensão da conquista. Por vezes ainda pressinto uma tensão homem-mulher com as minhas alunas e deixar-me-ia levar por ela, como noutras ocasiões, mas o sete da minha nova década paralisa-me, activa o sentido do ridículo e a substituição do tal como sou pelo tal como me vêem. Jamais, jamais se disse que o doutor Matasanz cometera um deslize ao insinuar-se a esta ou aquela aluna ou professora auxiliar, nem nunca se me atribuiu fracasso algum na cama, podendo exibir uma agenda cheia de direcções propícias, mas que correspondem a mulheres que cresceram comigo, que se gastaram comigo e que só as poderia convocar para que me aplaudissem ou para que eu as aplaudisse a elas, tudo menos convocá-las para uma operação harém saudade em que Paquita Rubial exercesse o papel de esplêndida mamona mas com meia dentadura já postiça ou Mercedes Anglés voltasse a insistir em que lhe atasse aqueles noutros tempos transparentes punhos dos quais se prolongava um dorso de navio, dos melhores navios, com um … no qual se podiam comer sopas e uma c… dantesca, não debalde por mim se vai à cidade doente, escreve Dante. Outras quinze sobreviventes na minha memória erótica, de um total de quarenta e cinco mulheres que me acompanharam numa cama ou num instrumento equivalente, conduziam-me a uma sexualidade memorizada, mas não havia carne fresca, salvo a daquela bolseira italiana empenhada em levar para a frente uma tese sobre a minha contribuição para o estudo da canção nacional espanhola e que se comovia cada vez que eu murmurava: este niño se lleva la flor. Que los otros no.
Este menino leva a flor, os outros não, digo a Myrna mal fica envolvida pelos três homens que a esperavam meditativos sobre as bondades de um menu escasso, mas atractiva a caldeirada ou o sortido de mariscos, por mais que o português lhes oponha a maldição daquele que partilha o seu corpo com o colesterol. Você não tem colesterol? Não, mas poderia ter. É uma graça indirectamente dirigida a Myrna, acostumado a que se ria de tudo quanto diga, inclusive das anedotas mais disparatadas e, com efeito, desata-se a rir, ciente de que o faz sem sentido da adoração, mas sim como um simples acto reflexo compensatório do meu trabalho. Um caldinho e pernil com grelos, peço para estupefacção de Estremoz García e Figueiro d’Amaral, carcomido o primeiro por todas as úlceras que cabem num estômago humano e muito especialmente as de um catedrático por oposição, e afogado em colesterol o português, como só se pode afogar em algo um português. Totalmente. Myrna olha para mim com um ar gozão e desafiador. Está a dizer-me: logo não vais poder dormir, e sabia que eu lhe estava a responder: isso depende de ti. Os outros dois estão interessadíssimos na minha intervenção no congresso, ambos surpreendidos pela minha dedicação a Erec e Enide, os dois mitos arturianos menos estudados pelos investigadores, talvez porque não escondam qualquer mistério». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT