quarta-feira, 22 de março de 2017

O Erotismo. Georges Bataille. «O erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objecto de desejo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Em princípio (não é uma regra), a Índia encara com simplicidade a sucessão das diferentes formas de que falei: a experiência mística é reservada à idade madura, quando se está perto da morte: no momento em que faltam as condições favoráveis à experiência real. A experiência mística ligada a alguns aspectos das religiões positivas opõe-se às vezes a essa aprovação da vida até na morte, onde eu vislumbro geralmente o sentido profundo do erotismo. Mas a oposição não é necessária. A aprovação da vida até na morte é desafio, tanto no erotismo dos corações quanto no dos corpos, desafio, por indiferença, à morte. A vida é acesso ao ser: se a vida é mortal, a continuidade do ser não o é. A aproximação e a embriaguez da continuidade dominam a consideração da morte. Em primeiro lugar, a desordem erótica imediata nos dá um sentimento que ultrapassa tudo, de forma que as sombrias perspectivas ligadas à situação do ser descontínuo caem no esquecimento. E, para além da embriaguez que se abre à vida juvenil, é-nos dado o poder de abordar a morte de frente, e de aí ver, enfim, a abertura à continuidade ininteligível, desconhecível, que é o segredo do erotismo e cujo segredo só o erotismo desvenda. Quem me acompanhou até aqui apreendeu com toda a clareza na unidade das formas do erotismo o sentido da frase que citei no princípio: não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina. Falei de experiência mística, não falei de poesia. Não poderia ter feito isto sem antes penetrar num dédalo intelectual: sentimos tudo o que é a poesia. Ela nos funda, mas não sabemos falar dela. Não falarei agora, mas creio tornar mais sensível a ideia de continuidade que quis salientar e que não pode continuar a ser confundida com a do Deus dos teólogos, lembrando estes versos de um dos poetas mais violentos, Rimbaud: foi reencontrada. O quê? A eternidade. o mar de partida com o Sol. A poesia conduz ao mesmo ponto como cada forma do erotismo; conduz à indistinção, à fusão dos objectos distintos. Ela nos conduz à eternidade, à morte, e pela morte, à continuidade: a poesia é l'éternité.

O erotismo, aspecto imediato da experiência interior, opondo-se à sexualidade animal
O erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objecto de desejo. Mas este objeto responde à
interioridade do desejo. A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do indivíduo: mesmo se ela recai sobre a mulher que a maioria teria escolhido, o que entra em jogo é frequentemente um aspecto indizível, não uma qualidade objectiva dessa mulher, que talvez não tivesse, se ela não nos tocasse o ser interior, nada que nos forçasse a escolhê-la. Em resumo, mesmo estando de acordo com a maioria, a escolha humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior, infinitamente complexa, que é típica do homem. O animal tem ele próprio uma vida subjectiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como acontece com os objectos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo que põe nele o ser em questão.
A própria sexualidade animal introduz um desequilíbrio e este desequilíbrio ameaça a vida, mas o animal não o sabe. Nele nada se abre que se assemelhe com uma questão. Seja como for, se o erotismo é a actividade sexual do homem, o é na medida em que ela difere da dos animais. A actividade sexual dos homens não é necessariamente erótica. Ela o é sempre que não for rudimentar, que não for simplesmente animal.

Importância decisiva da passagem do animal ao homem
Na passagem do animal ao homem, sobre a qual pouco sabemos, é dada a determinação fundamental. Dessa passagem, todos os acontecimentos nos são subtraídos; sem dúvida, definitivamente. Entretanto, nós estamos menos desarmados do que parece à primeira vista. Sabemos que os homens fabricaram instrumentos e os utilizaram a fim de prover a sua subsistência, depois, sem dúvida, bastante depressa, as suas necessidades supérfluas. Resumindo, eles se distinguiram dos animais pelo trabalho. Paralelamente, eles se impuseram restricções conhecidas como interditos. Essas interdicções essencialmente, e certamente, recaíram sobre a atitude para com os mortos. É provável que elas tenham tocado ao mesmo tempo, ou pela mesma época, a actividade sexual. A data antiga da atitude para com os mortos aparece nas numerosas descobertas de ossos recolhidos por seus contemporâneos. Em todo caso, o homem de Neandertal, que não era inteiramente um homem, que não tinha ainda atingido rigorosamente a posição erecta, e cujo crânio não diferia tanto quanto o nosso dos antropóides, enterrou muitas vezes os seus mortos. As interdicções sexuais não remontam certamente a esses tempos longínquos. Podemos dizer que elas aparecem por toda a parte onde a humanidade surgiu, mas, na medida em que devemos nos ligar aos dados da pré-história, não encontramos nada de tangível que o comprove. O sepultamento dos mortos deixou vestígios, mas nada subsiste que nos dê mesmo uma indicação sobre as restrições sexuais dos homens mais antigos». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT