sexta-feira, 3 de março de 2017

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «Machos e fêmeas são dois tipos de indivíduos que, no interior de uma espécie, se diferenciam em vista da reprodução: só podemos defini-los correlativamente»

Cortesia de wikipedia e jdact

Factos e Mitos. Destino
«A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto fêmea soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha da sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: é um macho! O termo fêmea é pejorativo não porque enraíza a mulher na Natureza, mas porque a confina no seu sexo. E se esse sexo parece ao homem desprezível e inimigo, mesmo nos bichos inocentes, é evidentemente por causa da inquieta hostilidade que a mulher suscita no homem; entretanto, ele quer encontrar na biologia uma justificação desse sentimento. A palavra fêmea sugere-lhe uma chusma de imagens: um enorme óvulo redondo abocanha e castra o ágil espermatozoide; monstruosa e empanturrada, a rainha das térmitas reina sobre os machos escravizados; a fêmea do louva-a-deus e a aranha, fartas de amor, matam o parceiro e o devoram; a cadela no cio erra pelas vielas, deixando atrás de si um rastro de odores perversos; a macaca exibe-se impudentemente e se recusa com faceirice hipócrita; as mais soberbas feras, a tigresa, a leoa, a pantera, deitam-se servilmente para a imperial posse do macho. Inerte, impaciente, matreira, estúpida, insensível, lúbrica, feroz, humilhada, o homem projecta na mulher todas as fêmeas ao mesmo tempo. E o facto é que ela é uma fêmea. Mas se quisermos deixar de pensar por lugares-comuns duas perguntas logo se impõem: que representa a fêmea no reino animal? E que espécie singular de fêmea se realiza na mulher?
Machos e fêmeas são dois tipos de indivíduos que, no interior de uma espécie, se diferenciam em vista da reprodução: só podemos defini-los correlativamente. Mas é preciso observar que o próprio sentido do seccionamento das espécies em dois sexos não é muito claro. Na Natureza ela não se acha universalmente realizada. Para só falar dos animais, sabe-se que entre os unicelulares, infusórios, amebas, bacilos etc., a multiplicação é fundamentalmente distinta da sexualidade, com as células dividindo-se e subdividindo-se solitariamente. Entre alguns metazoários, a reprodução opera-se por esquizogénese, isto é, fraccionamento do indivíduo cuja origem é também assexuada; ou por blastogénese, isto é, fracionamento do indivíduo produzido ele próprio por um fenómeno sexual; os fenómenos de gemiparidade e de segmentação observados na hidra de água doce, nos celenterados, nas esponjas, nos vermes, nos tunicários são exemplos conhecidos. Nos fenómenos de partenogénese, o ovo virgem desenvolve-se em embrião sem intervenção do macho; este não desempenha papel algum ou apenas um papel secundário: os ovos de abelha não fecundados subdividem-se e produzem zangãos; entre os pulgões não existem machos durante uma série de gerações, e os ovos não fecundados dão fêmeas. Reproduziu-se artificialmente a partenogénese no ouriço-do-mar, na estrela-do-mar, na rã. Entretanto, entre os protozoários, às vezes duas células femininas fusionam, formando o que se chama um zigoto; a fecundação é necessária para que os ovos da abelha gerem fêmeas e para que os dos pulgões deem machos. Certos biólogos chegaram à conclusão de que, mesmo nas espécies capazes de se perpetuarem de maneira unilateral, a renovação do germe mediante uma mistura de cromossomos estranhos seria útil ao rejuvenescimento e ao vigor da linhagem; compreenderíamos assim que, nas formas mais complexas da vida, a sexualidade é uma função indispensável. Somente os organismos elementares poderiam multiplicar-se sem sexos e ainda assim esgotando a sua vitalidade. Mas essa hipótese é hoje das mais controvertidas; observações provaram que a multiplicação assexuada pode verificar-se indefinidamente, sem que se perceba nenhuma degenerescência; o facto é particularmente impressionante entre os bacilos. As experiências de partenogénese tornaram-se cada vez mais numerosas e ousadas, e, em muitas espécies, o macho se evidencia radicalmente inútil. Mas, ainda que a utilidade de uma troca intercelular fosse demonstrada, apresentar-se-ia como um simples facto injustificado. A biologia constata a divisão dos sexos, mas embora imbuída de finalismo não consegue deduzi-la da estrutura da célula, nem das leis da multiplicação celular, nem de nenhum fenómeno elementar. A existência de gametas heterogéneos não basta para definir dois sexos distintos; na realidade, acontece, muitas vezes, a diferenciação das células geradoras não acarretar cisão da espécie em dois tipos: ambas podem pertencer a um mesmo indivíduo. É o caso das espécies hermafroditas, tão numerosas entre as plantas e que se encontram também em muitos animais inferiores, os anelados e os moluscos, entre outros. A reprodução efectua-se então ou por autofecundação ou por fecundação cruzada. Neste ponto, igualmente, certos biólogos pretenderam legitimar a ordem estabelecida. Consideram o gonocorismo, isto é, o sistema em que as diferentes gonadas pertencem a indivíduos distintos, como um aperfeiçoamento do hermafroditismo realizado por via evolutiva; mas outros, ao contrário, julgam o gonocorismo primitivo: o hermafroditismo não passaria de uma degenerescência. Como quer que seja, essas noções de superioridade de um sistema sobre o outro implicam, no que concerne à evolução, teorias das mais contestáveis. Tudo o que se pode afirmar com certeza é que esses dois modos de reprodução coexistem na Natureza, que realizam, um e outro, a perpetuação das espécies e que, tal qual a heterogeneidade dos gametas, a dos organismos portadores de gonadas se apresenta como acidental. A separação dos indivíduos em machos e fêmeas surge, pois, como um facto irredutível e contingente». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, 2009 / 2015, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada, ISBN 978-989-722-193-4.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT