sábado, 25 de março de 2017

Paródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas de Camões. Quatro Estudantes de Évora. 1589. Décio Carneiro. «Dois meses durava aquela sessão extraordinária; e já tão continuados passeios davam que falar aos estudantes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«As honras da paródia só às obras do génio costumam conceder-se. A divina Ilíada foi parodiada num poema herói-cómico tão antigo, que geralmente se atribui ao próprio Homero; ainda que Suidas lhe dá por autor a Pigres, irmão da Rainha Artemisa. Nesse poema, intitulado a Batrachomiomachia, a terrível luta dos Gregos e Troianos é reproduzida no maravilhoso combate dos ratos e das rãs. Esta coroa burlesca ainda faltava ao rival de Homero, quando o poeta Scarron primeiro marido da famigerada Marquesa de Maintenon, se lembrou de cantar:

… cet home pieux,
Qui vint chargé de tous se Dieux
Et de Monsieur son père Anchise,
Beau vieilard à la barbe grise, etc.

A grande obra do único homem de génio que talvez tenha produzido a nossa terra, não podia isentar-se deste fado inerente às grandes celebridades. Eram apenas passados dezoito anos depois da publicação dos Lusíadas ainda a reputação de Camões não estava consagrada pelos séculos, quando alguns homens engenhosos compreenderam que aquela obra imortal era uma daquelas a que a paródia era devida. O resultado de seus trabalhos não é de certo para comparar com nenhuma das espirituosas produções que ficam mencionadas; mas ainda assim não é esta inteiramente destituída de merecimento. Francisco Soares Toscano, bem conhecido dos literatos pelo seu Paralelo de Príncipes, escreveu uma interessante notícia sobre esta obra, em que nos conta o curioso modo por que ela foi composta. Quatro estudantes da Universidade de Évora costumavam sair a passear, às tardes, aos arrabaldes da cidade, levando consigo os Lusíadas. Chegados a um verde ferrageal, sentavam-se a uma fresca sombra, e se abria a sessão parodiadora. Assim como a engelhada e disforme máscara de uma velha megera cobre o rosto radiante de formosura de uma elegante Coquete, para mais fazer realçar seus encantos, quando deixe cair aquele hediondo disfarce; assim o imortal poema devia ser desfigurado por aqueles travessos estudantes. Os Gamas, Castros e Albuquerques tinham de ceder o seu lugar aos Catigelas, Lunas e Barbanças, barões sem dúvida tão assinalados nos combates de Baco como ess’outros nos de Marte.
Dois meses durava aquela sessão extraordinária; e já tão continuados passeios davam que falar aos estudantes e também dariam que entender à Santa Inquisição (maldita) de Évora, se aquela sociedade secreta não fosse composta, como de facto o era, de quatro teólogos, e tão ortodoxos, que um deles veio a ser inquisidor geral. Mas por fim apareceu a misteriosa obra dos quatro patuscos, como hoje lhe chamaria um académico, e não sei se já então lhe chamavam. A este modo de composição de sociedade e às muitas emendas que depois sofreu dos curiosos, como adverte Toscano, se deve talvez a confusão do enredo deste poema. Parece que os seus colaboradores tinham principalmente em vista inverter ao de-vinho cada verso que entrava em discussão, sem atender à coerência do todo. É provável que se propusessem a celebrar os mais famosos bebedores Évorenses, aos quais aludissem, e talvez nomeassem por seus próprios nomes ou apelidos. Toscano, que os devia conhecer, assim o indica quando diz que tinha feito várias cotas a esta paródia para melhor se entender. Com efeito na est. XXX se faz menção de um Pero Vaz, que provavelmente é o mesmo cristão-novo, bêbado perdido, autor do epigrama latino de que fala a notícia. Infelizmente para a história da Borracheologia Lusitana, cotas e epigrama tudo se perdeu.
Os colaboradores desta inocente profanação literária não são inteiramente desconhecidos. Manoel do Vale de Moura, natural de Arraiolos no Alentejo, doutorou-se em Teologia na Universidade de Évora, e chegou a ser arcebispo desta diocese e inquisidor geral. Contava vinte e cinco anos quando concorria para esta composição, e chegou a uma avançada idade. Além da obra De Encantationibus et Ensalmis, de que fala Toscano, e outras de não menor utilidade, Barboza o faz autor de uma Ilustração à primeira Ode de Camões. De certo não fez pouco Sua Reverendíssima se conseguiu lançar alguma luz sobre aquele confuso ou estropiado poema. Nem Bartolomeu Varela, nem o licenciado Manoel Luiz, tiveram a honra de encher as colunas da Biblioteca Lusitana; mas João Batista Castro de ambos faz menção no seu Mapa de Portugal. Não é contudo a Varela, como ele pensa, que cabem os louvores que lhe dá por esta composição burlesca. Manoel Luiz Freire, que assim lhe chama um padre Francisco Cruz, citado por Castro, se deve ter como o principal e mais chistoso colaborador desta obra». In Décio Carneiro, Paródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas de Camões, Quatro Estudantes de Évora, 1589, 1880, autoria anónima, Projecto Livro Livre, livro 660, 2015, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes.

Cortesia de IbaMendes/JDACT