sexta-feira, 24 de março de 2017

O Apogeu da Cidade Medieval. Jacques le Goff. «Quase sempre a fome, a sede, a doença ou a traição explicam as derrotas pouco numerosas dos cidadãos sitiados»

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A cidade e o exterior. As muralhas
«(…) Os mais espectaculares, os mais dramáticos, os mais significativos foram aqueles sofridos pelos habitantes de algumas cidades do Sul quando da cruzada dos albigenses. Em 1209, os cruzados franceses sitiam Béziers. A canção em occitano iniciada por Guillaume Tudèle conta assim a ilusão dos habitantes de Béziers1: E achavam que a sua cité estava tão bem fechada, e por muros cercada e estreitada, que não poderia ser forçada por um mês inteiro. Ora, logo após a chegada dos cruzados, libertinos (truands, arlots, gars, como ainda lhes chamam os textos da época), provavelmente mercenários especialmente treinados, arrombam as portas da cidade, abrindo o caminho para os cruzados, que se entregaram a um dos mais selvagens massacres da história.
São mais de quinze mil... Cercam toda a cidade para demolir os muros, descem aos fossos e dão golpes de picareta, outros vão quebrar e despedaçar as portas. Vendo isto, os burgueses foram tomados de pavor...
Depois, nesse mesmo verão de 1209, é o sítio de Carcassonne. Os seus habitantes tomam mais precauções do que os de Béziers, destruindo inclusive o refeitório, o celeiro e as estalas da igreja dos cônegos regulares para reforçar os muros da cidade. Eis o começo do relato do cerco pelos assaltantes: no terceiro dia, os nossos, esperando tomar de assalto e sem máquinas o primeiro subúrbio, que era um pouco menos fortificado que o outro, precipitaram-se sobre ele todos ao mesmo tempo... Tomaram o primeiro subúrbio, que os inimigos tinham abandonado imediatamente... Os nossos julgaram que poderiam tomar da mesma forma o segundo subúrbio (que é, de longe, mais fortificado e mais bem defendido). Ante esse assalto, o visconde e os seus defenderam-se de maneira tão viril que os nossos tiveram de retirar-se do fosso onde haviam penetrado, sob um jacto incessante de pedras. Os nossos levaram máquinas, chamadas roqueiras pierrières, para demolir os muros. Quando o alto das muralhas foi abalado pelo arremesso das roqueiras, nossos fogueteiros levaram um carro de quatro rodas, coberto de peles de bois..., os adversários logo o destruíram, lançando ininterruptamente fogo, paus, pedras, sem conseguir retardar o trabalho dos sapadores, os quais se haviam introduzido no fundo de uma cavidade praticada na parede... No dia seguinte, ao raiar do dia, o muro demolido desabou... A canção occitana conta-nos o último episódio.

O visconde e os seus subiram aos muros,
lançaram-se com balestras flechas munidas de pena,
e de ambos os lados muitos morreram.
Se o povo que se reunira não fosse tão grande,
pois viera de toda a terra,
jamais se teria conseguido tomá-la e forçá-la em menos de um ano,

porque as torres eram altas e os muros ameados.
Mas a água lhes foi tomada, e os poços secaram,
devido ao grande calor e ao pleno verão,
devido a infecção que se espalha entre os homens, que caíram doentes.

E ao numeroso gado que se esfolara
e que fora trazido de toda a região,
devido aos fortes gritos, que de toda parte soltavam
mulheres e crianças, dos quais tudo estava atulhado...

Em compensação, no ano de 1240, quando o descendente dos Trencavel, a família viscondal, tentou retomar a cidade e a sitiou, não teve êxito. O relato do senescal Guillaume d‘Ormois em Branca de Castela especifica as consideráveis melhorias  trazidas à muralha quando da reconstrução de 1228-1299. Fizeram-se liças protegidas por uma muralha em alvenaria munida de um parapeito ameado e flanqueado de torres de apoio e de pelo menos três barbacãs. Assim, tal como nos castelos fortificados, a defensiva prevaleceu habitualmente nas cidades, e as muralhas dissuadiram ou resistiram. Quase sempre a fome, a sede, a doença ou a traição explicam as derrotas pouco numerosas dos cidadãos sitiados. Compreende-se que o primeiro cuidado dos sitiantes vencedores tenha sido o de fazer destruir por razões militares e simbólicas essas muralhas, sinal insolente do espírito de resistência dos citadinos». In Jacques le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, 1980, Livraria Martins Fontes Editora, 1989, 1992, ISBN 978-853-360-127-1.

Cortesia de LMartinsFontesE/JDACT