quinta-feira, 20 de agosto de 2020

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «Foi muitos anos depois que descobri que afinal já conhecia Molière desde a água-furtada: conversara comigo, fora meu guia de leitura…»

jdact

Molière e a Toutinegra

«(…) Durante muito tempo (dias? semanas? meses? que tamanho tem o tempo na infância?) me intrigou o guia de conversação. Lia nele coisas que me agradavam, que me divertiam: casos passados em caminhos-de-ferro e diligências, cavalos cansados, bagagens perdidas, rodas que se quebravam em sítios descampados, chegadas a estalagens, quartos que era preciso aquecer com grandes fogos de lenha. Apesar de não encontrar casos destes entre a casa e a escola, eu achava que devia ser bom viver assim, com tantos imprevistos da fortuna. Mas o que mais me fascinava eram uns diálogos às vezes compassados e solenes, outras vezes vivos e rápidos como o reflexo do sol varrido por uma janela que se fecha. Quando tal acontecia, punha-me a sorrir de uma certa maneira que só agora entendo: sorria como o adulto que ainda estava longe. Foi muitos anos depois que descobri que afinal já conhecia Molière desde a água-furtada: conversara comigo, fora meu guia de leitura, enquanto a Toutinegra dormia divorciada entre dois lençóis, na gaveta da cómoda, com cheiro a naftalina e a tempo não de todo perdido.

E Também Aqueles Dias

E houve também aqueles dois gloriosos dias em que fui ajuda de pastor, e a noite de permeio, tão gloriosa como os dias. Perdoe-se a quem nasceu no campo, e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos. O mito do paraíso perdido é o da infância, não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei. Meus avós tinham decidido, porque a venda dos bácoros havia sido fraca, que o resto das ninhadas seria vendido na feira de Santarém, por melhor preço e sem mais gasto de dinheiro. Porque o caminho seria andado a pé, quatro léguas de campo, a passo de porco pequeno, para que os animais chegassem à feira com sorte de comprador. Perguntaram-me se eu queria ir de ajuda com o tio mais novo, e eu disse que sim, nem que fosse de rastos. Ensebei as botas para a caminhada e escolhi no alpendre o pau que mais jeito dava aos meus doze anos esgalgados. Sempre foram caladas as minhas alegrias, e por isso não soltei os gritos que me estavam no peito, que até hoje não pude deixar sair.

Começámos a jornada a meio da tarde, meu tio atrás, com o cuidado de não deixar perder nenhum bácoro, eu à frente, levando a marrã nos calcanhares. Imaginava-me como uma figura de proa avançando pelas estradas e caminhos como sabia que faziam nos mares os barcos de piratas de que falavam os meus livros de aventuras. Uma vez por outra, meu tio revezava-me e eu tinha de comer o pó que as patinhas miúdas dos animais levantavam do caminho. No meio deles, mãe verdadeira de alguns e emprestada de todos os outros, a marrã conservava-os unidos. Era quase noite fechada quando chegámos à quinta onde ficaríamos para o dia seguinte. Metemos os animais num barracão e comemos o farnel leve, perto de uma janela iluminada, porque não tínhamos querido entrar (ou não nos deixaram?). Enquanto comíamos, veio um criado dizer-nos que poderíamos dormir na cavalariça. Deu-nos duas mantas lobeiras e foi-se embora. Soltaram-se os cães, e nós não tivemos mais remédio que ir dormir. A porta da cavalariça ficaria aberta toda a noite, e assim nos convinha, pois teríamos de sair pela madrugada, muito antes de nascer o sol, para chegarmos a Santarém no principiar da feira. A nossa cama era um extremo da manjedoura que acompanhava toda a parede do fundo. Os cavalos resfolgavam e davam patadas no chão empedrado, coberto de palha. Deitei-me como num berço, enrolado na manta, respirando o cheiro forte dos cavalos, toda a noite inquietos, ou assim me pareciam nos intervalos do sono. Sentia-me cansado, com os pés moídos. A escuridão era quente e espessa, os cavalos sacudiam as cabeças com força, e o meu tio dormia. Os ruídos da noite passavam por sobre o telhado. Adormeci como um santo: assim minha avó diria se ali estivesse. Acordei quando meu tio me chamou, madrugada alta. Sentei-me na manjedoura e olhei para a porta, com os olhos piscos de sono e deslumbrados por uma luz inesperada. Saltei para o chão e vim ao pátio: na minha frente estava uma lua redonda e enorme, branca, entornando leite sobre a noite e a paisagem. Era tudo branco refulgente onde a lua dava e negro espesso nas sombras. E eu que só tinha doze anos, como já ficou dito, adivinhei que nunca mais veria outra lua assim. Por isso é que hoje me comovem pouco os luares: tenho um dentro de mim que nada pode vencer. Fomos buscar os porcos e descemos ao vale, cautelosamente, porque havia silvas e barrocos, e os animais estranhavam a matinada e perdiam-se facilmente. Depois tudo se tornou simples. Seguimos ao longo de vinhas maduras, por um caminho coberto de pó que a frescura da noite mantinha rasteiro, e eu saltei ao meio das cepas e colhi dois grandes cachos que meti na blusa enquanto corria os olhos em redor, a ver se o guarda aparecia. Voltei ao caminho e dei um cacho a meu tio. Fomos andando e comendo os bagos frios e doces, que pareciam cristalizados, de tão duros.

Começámos a subir para Santarém quando o sol nascia. Estivemos na feira toda a manhã e parte da tarde. Não vendemos os bácoros todos. Por isso tivemos de regressar também a pé, e foi aí que aconteceu aquilo que não tornou mais a acontecer. Por cima de nós formou-se um anel de nuvens que quase ao sol-pôr enegreceram e começaram a largar chuva, e então por muito tempo andámos sem que uma gota nos apanhasse, enquanto à nossa volta, circularmente, uma cortina de água nos fechava o horizonte. Por fim as nuvens desapareceram. A noite vinha devagar entre as oliveiras. Os animais faziam aqueles ruídos que parecem uma interminável conversa. Meu tio, à frente, assobiava devagarinho. Por causa de tudo isto me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1969, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, Crónica, José Saramago, Nobel, Cultura, Arte,