terça-feira, 25 de agosto de 2020

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Meu pai, dom Vicente Alonzo Carbazón, era conhecido na nossa cidade de Las Conchas pela severidade em lidar com criminosos, mas eu nunca tinha visto um ódio tão frio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) Rapidamente fizeram um laço na corda e o colocaram em volta do pescoço do meu pai, e os soldados o içaram bem alto no galho da árvore. Alguns deles riram e gracejaram enquanto faziam isso, como se fosse um desporto ver um homem chutar o vazio e desesperadamente agarrar a garganta enquanto morria sufocado. Um soldado, porém, um homem ruivo troncudo, adiantou-se e puxou com força as pernas do meu pai para acabar com sua agonia. O corpo do meu pai estremeceu num último espasmo. Os braços caíram para os lados. Para mim, parecia que ele os estendia para me abraçar. Pulei para o pátio e corri até ele, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Pai! Pai!, gritei.  Pai! Dom Vicente parou na soleira da porta da casa. Examinou-me com desdém. Eu deveria imaginar. Uma podridão como essa sempre gera mais sujeira. Suas feições se contraíram formando linhas de profunda repugnância. É melhor eliminar o fruto e a semente. Abanou a mão numa ordem para os soldados. Que o filho do mendigo dance a mesma dança. O tenente gesticulou com a cabeça para o cavalariço. Traga outra corda, disse ele.

Zarita

Meu pai, dom Vicente Alonzo Carbazón, era conhecido na nossa cidade de Las Conchas pela severidade em lidar com criminosos, mas eu nunca tinha visto um ódio tão frio no seu rosto antes daquele terrível dia de Verão. Alertado pela agitação, ele veio à porta de nossa casa. Após ouvir de Ramón a versão deturpada dos acontecimentos, ele atingiu a boca do pedinte com tanta força que o rosto do homem se abriu como uma romã rebentando. A visão do pobre homem rastejando a seus pés pareceu inflamar em vez de aplacar a raiva de pai. Eu não sabia que ele estava enfurecido pela tristeza e perdera o controle das emoções. Pai. Pousei a mão no seu braço, mas ele afastou-a e me dispensou. Então: o horror! Mandaram buscar uma corda. Olhei para Ramón, para que ele parasse com aquilo, mas ele continuava furioso por ter sido humilhado na igreja e ter precisado convocar soldados para ajudá-lo a capturar um camponês debilitado. A terrível satisfação revelada no seu comportamento me disse que não adiantava apelar para que ele detivesse o pai. Recuei cambaleante pela soleira da porta enquanto os soldados executavam a sua horrível tarefa. Então um rapaz saltou de cima do muro da propriedade e correu na nossa direcção, soluçando e gritando pelo pai. Um dos soldados o agarrou pelo cós dos calções e o ergueu no ar. Mais um para os corvos arrancarem os olhos, gargalhou. E ouvi palavras desprezíveis vomitadas da boca de pai, que mandou o tenente enforcar o rapaz com o pai. Pai! Dessa vez, meu grito agudo chamou-lhe a atenção. O rapaz não estava na igreja. Ele não tem nada a ver com isso.

Esses ladrões e salteadores agem em bandos, disse-me o pai. Ele tentou-me fazer entrar em casa. Você é jovem e inocente demais, minha filha, para saber de certas coisas. Ele não passa de uma criança. Puxei a manga da camisa de papa. Olhe para ele. Pense no seu filho recém-nascido. Eu não tenho filho. Encarei meu pai. Então notei algo que não tinha percebido antes. Ele não estava vestido de maneira apropriada, e os cabelos e a barba estavam desgrenhados. Seu irmão morreu meia hora atrás, explicou. Ah, não! Lágrimas quentes inundaram os meus olhos. Minha mãe suportou nove gravidezes desde o meu nascimento, com todas elas, excepto esta última, resultando em abortos. E, agora, o bebé estava morto. Não admirava que o pai estivesse descontrolado. Pai! Pai! Lá fora, o rapaz continuava lutando e se esticando para tocar no cadáver do pai que pendia da árvore. Mas o laço de uma segunda corda foi colocado em volta do seu pescoço e o tenente jogou a longa extremidade por cima do mesmo galho. Você estará com o seu pai muito em breve, zombou um dos soldados. Ele começou a puxar a ponta da corda, e o rapaz ergueu-se no ar, as pernas chutando do mesmo modo como fizeram as de seu pai havia menos de cinco minutos. Ajoelhei-me diante de meu pai. Pense na mãe, implorei. É uma mãe bondosa e gentil para mim. Ela não iria querer que esse rapaz morresse assim como o seu próprio filho». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,