quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Mary é importante, explicou. Safa os nossos pilotos de caírem nas mãos dos boches. Se começa a dormir com todos, isso vai criar problemas…»

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Lisboa, 22 de Junho de 1995

Mary

«(…) Caramba, 50 anos depois, deitado numa cama do Hotel da Lapa, ainda me sinto excitado com aquela primeira conversa louca que tive com Mary. A nossa vida é feita de memórias, é isso que conta no fim. Obviamente, não demorámos muito tempo a cair nos braços um do outro. Ela era uma mulher necessitada de homem, e eu um homem necessitado de mulher. No entanto, tenho uma recordação difusa dessa primeira noite. Aconteceu-me várias vezes isso na primeira noite com uma mulher. Estamos demasiado excitados para reparar nos pormenores. Só recordo de que foi a primeira vez que lhe vi as ligas e eram pretas. Do que me lembro melhor foi do regresso do medo. Depois do amor e do sexo, Mary ficava sombria, o seu mundo interior fustigado por ventos mais fortes do que os do ciclone, que fazia bater as portadas contra as paredes da casa. Regressava a Londres e às bombas. Agarrava-se a mim e dizia: Jack Gil, tu não sabes o que é uma bomba a cair e nós a cair com ela...

Observo um pombo enquanto ele voa, a princípio na direcção da Rua Augusta, depois inclinando-se para a sua esquerda, como se fosse visitar a Pastelaria Suíça, aonde não chega, pois voltou a mudar de ideias e agora plana para o centro da Praça do Rossio. Irá pousar junto dos outros pombos, na estátua de dom Pedro? Não é isso que faz e prossegue com nova guinada, ganhando altitude, a caminho do Teatro D. Maria. O Rossio de 1995 é semelhante ao que conheci. No chão há alcatrão em vez de empedrado e há traços pintados a branco. Circulam autocarros laranjas, feios táxis cor de creme, e muitos mais carros do que no meu tempo. Mas a praça continua soalheira, alegre, barulhenta, com pombos e gente sempre agitada. Fixo a estátua de dom Pedro, ao lado da qual, há 50 anos, o meu amigo Michael soltou as suas máximas sobre Mary e o coronel James Bowles. O marido devia tomar conta dela. É isso que eu penso, declarou. À nossa volta, centenas de pessoas enchiam a praça. A maioria, eram estrangeiros e quase não se ouvia falar português, mas sim francês, inglês, alemão, polaco ou holandês. Desde Junho de 40, após a derrota da França pela blitzkrieg nazi, Portugal fora invadido por refugiados, que passavam os seus dias ociosos entre a Baixa e a Avenida da Liberdade. Arrastavam malas, sacos cheios de roupas, crianças. Instalavam-se nas pensões e nos hotéis, sentavam-se nos cafés, ou formavam filas, à porta da estação dos Correios, das companhias de navegação, ou dos consulados britânico ou americano. À espera de um visto e de um bilhete de barco que os colocassem a caminho do Brasil ou da América. A Mary anda descontrolada. E isso é perigoso. Percebes, Jack? Parei, no meio da praça: porquê?

O meu amigo olhou-me com curiosidade. Michael era inglês, mas também nascera na África do Sul. Não em Cape Town, como eu, mas em Joanesburgo. Por lá crescera, até vir para Portugal. Há cinco anos, mais ou menos na mesma altura em que eu viera para Lisboa, ele tinha sido admitido no Foreign Office, e fora colocado três anos em Free Town. Acho que, desses tempos difíceis que passou na Libéria, lhe ficara uma dureza de carácter que jamais o abandonou. Deixara também crescer uma barba rala, cujo tom dourado lhe dava um ar de actor de cinema. Tinha imenso sucesso com as mulheres e, ao olhar para os seus olhos azuis e vivos, e para a sua tez queimada pelo sol, não me era difícil perceber porquê. Mary é importante, explicou. Safa os nossos pilotos de caírem nas mãos dos boches. Se começa a dormir com todos, isso vai criar problemas. Surpreendido, perguntei: a dormir com todos? Michael sorriu, condescendente: Jack, não me digas que achas que és o primeiro? Bati as pestanas, confundido. Ele fez um ar trocista: Jack, por favor. Até o David já dormiu com a Mary! O David? David era um dos adidos económicos da Embaixada inglesa. Apesar de bom tipo e simpático, era um pouco efeminado para o meu gosto, e duvidava das suas inclinações. Sim, Jack. O David, eu, o Barney da Sandeman, cada vez que vai ao Porto, e sei lá mais quantos. O coronel sai da cama por um lado e entra logo um homem do outro!» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

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