terça-feira, 18 de agosto de 2020

O Labirinto no Fim do Mundo. Marcello Simoni. «Queimaduras horríveis, causadas por..., alguma coisa cravada nas suas costas. A cela está tomada pelo cheiro de enxofre»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

1229. 154 de Janeiro. Basílica Minor de Seligenstadt

«(…) Ouviu-se um ruído, um arrastar de sandálias no corredor próximo. Konrad ergueu os olhos do papel e apurou o ouvido até que um homem apareceu na soleira. Era um franciscano com uma larga tonsura rodeada de cabelos hirsutos, o rosto iluminado por dois olhos de asceta. Meu amigo Gerhard von Lützelkolb! Von Marburg pôs-se de pé, abrindo os braços. Estava agora mesmo me perguntando por que demorava tanto. O frade fez uma leve reverência e inspirou profundamente, várias vezes. Viera correndo. Fui retido, magister. Perdoe-me. Magister. Era assim que Konrad era chamado nos últimos dois anos, desde quando o Santo Padre o havia incumbido de uma missão de grande importância, sinal indubitável de predilecção, mas também um fardo pesadíssimo. A ninguém antes tinha sido conferido o encargo de investigar a heresia com a finalidade declarada de extirpá-la a todo custo. Esse poder o coloc ava acima de qualquer bispo, prior ou abade e suscitava em todos um temor reverente. Gerhard von Lützelkolb olhou em volta, aconchegando-se no manto de lã que trazia sobre o hábito. Parecia buscar uma fonte de calor, que, no entanto, não encontrou. Estou ficando gelado neste quarto. O gelo purifica, retrucou o religioso, em tom de censura. O frade mordeu os lábios. O rigor de Von Marburg era bem conhecido. Bem, magister... O que ordena? Konrad lhe fez sinal para esperar. Deu uma última olhada nas cartas e lacrou-as. Devem ser enviadas imediatamente, recomendou, entregando-as ao franciscano. Os mensageiros estão prontos para partir. Gerhard sopesou os dois rolos, hesitante. As mãos lhe tremiam e uma luz estranha se projectava de seus olhos. Konrad observou-o atentamente. Não deixava escapar nada, nem o mínimo detalhe. Alguma coisa o perturba? Antes de responder, o franciscano emitiu uma espécie de grunhido. Aconteceu uma coisa terrível, magister. Explique-se. Tem a ver com o clérigo Wilfridus, o herege que o senhor acabou de interrogar. O que foi? Ordenei que permanecesse na cela até ser enforcado. Isso não será necessário. A boca de Gerhard se contorceu. Ele já está morto. Konrad cerrou os punhos contra o peito. Mas como... Os guardas o encontraram todo queimado. Por isso me atrasei. Queimaduras horríveis, causadas por..., alguma coisa cravada nas suas costas. A cela está tomada pelo cheiro de enxofre. Ninguém viu nada? Não, mas... Como isso teria acontecido? Era impossível entrar naquela cela. A janela é estreita demais para dar passagem a... Um homem? Konrad pousou-lhe as mãos nos ombros, o rosto descontraído por um sorriso. Ali estava, pensou, o tão esperado sinal. Antes de falar, saboreou as palavras. Não receie dar voz aos seus pensamentos, meu amigo. À noite, o Maligno cavalga por estas terras. Gerhard fez o sinal da cruz, como que para se proteger de uma maldição. Vamos, encaminhe logo estas cartas, apressou-o Konrad. E ore ao Senhor para que nos dê forças. Em seguida, apesar do frio intenso, Konrad aproximou-se de novo da janela e abriu-a. Precisava olhar para fora, procurar na escuridão. O vento entrou assobiando no quarto, apagando a vela. E as trevas da noite, densas como breu, invadiram tudo.

O Signo do Sagitário. Paris. 26 de Fevereiro

«Nem o diabo se deve temer. Ele é, na verdade, o Sagitário armado de setas inflamadas que, a qualquer momento, infunde o terror nos corações do gênero humano». In Zenone di Verona

Suger olhou de novo para trás. Alguém o seguia. Uma figura imponente, envolta num manto esfarrapado. Ele a notara havia poucos minutos, enquanto descia da colina de Sainte-Geneviève em direcção à Cité, e, temendo uma agressão, tinha apressado o passo. Além daquele estranho, não havia nada na rua, excepto ratos e lixo. Sujeira por todo lado, em grande parte vestígio dos festejos do Carnaval. Ele cobriu a cabeça com o capuz para se proteger do frio e, após alguns passos, olhou de novo para trás. O homem do manto esfarrapado se aproximava cada vez mais... Antes o abade de Saint-Victor não o tivesse chamado! Suger era magister medicinae no Studium, mas não rico o suficiente para se recusar a uma visita depois do anoitecer, sobretudo quando os pacientes pagavam bem. Além da infusão de segurelha e do cataplasma para os pés inchados, o ancião exigia uma boa dose de paciência. Suger detestava as queixas do velho e, todas as vezes que atendia a pessoas assim, lamentava não ter escolhido a profissão do pai, fabricante de vitrais de igrejas por quarenta anos». In Marcello Simoni, O Labirinto no Fim do Mundo, 2013, Editora Jangada, 2015, ISBN 978-855-539-026-5.

 

Cortesia de EJangada/JDACT

 

JDACT, Marcello Simoni, Literatura, Mistério,