domingo, 27 de setembro de 2020

Estudos Ibéricos. Maria Idalina Rodrigues. «… a título mais apelativo que metodologicamente rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que, nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia…»

jdact e cortesia de wikipedia

Da Cultura à Literatura. Pontos de Encontro, séculos XIII a XVII

«Num tempo de saudável rotação e de descrédito de velhos travões no andamento dos estudos literários, em que, com o assentimento dos críticos e a atenção interessada de muitos investigadores, justamente crescem e se celebram, entre nós, os trabalhos sobre Literatura oral e tradicional e, em especial, sobre o Romanceiro ibérico, não deixa talvez de ser prudente avisar à partida o descuidado leitor deste escrito daquilo que nele por certo não encontrará. Ou seja, preveni-lo honestamente de que o envolvimento com os velhos relatos lírico-dramáticos não avaliza, neste caso, um entendido na sedutora rede de definições, normas de estrutura ou de discurso, rotas antigas e actuais do romance peninsular; recomenda apenas, e muito mais modestamente, outro leitor, agradado do teatro peninsular dos séculos XVI e XVII, com certa prática e muito comprazimento no ajustar dos textos espanhóis e portugueses, não raro com antepassados comuns, que recuam, por sinal, até ao Romanceiro luso-espanhol. Aliás, a travessia pelos romances dos dramaturgos ibéricos, particularmente dos da vizinha Espanha, foi tão larga que valeria bem a pena levar mais longe o que já está feito no sentido de separar trigo e joio nessa vasta seara das letras. Temos, de resto, pioneiros que clamam por continuadores: Carolina Michaëlis de Vasconcelos, por exemplo, avançou oportunamente um rol bastante significativo de embrechamentos e aproximações. Na esperança de estudo alheio de maior fôlego, vão entretanto os afeiçoados, a esta temática dos cruzamentos e contaminações entre romance e teatro, diversificando as achegas em áreas parciais, em busca da possível concertação final.

Foi a dentro destes parâmetros que me aventurei a acudir de perto, e a título mais apelativo que metodologicamente rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que, nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia, conta a morte de Valdovinos por Carloto, filho de Carlos Magno, e a vingança reclamada pelo marquês de Mântua, seu tio, e prontamente satisfeita pelo próprio imperador. A recapitulação das destemidas proezas, onde a lembrança e a invenção se confundem, ficará condicionada aos ensinamentos, aliás, nem sempre coincidentes, de umas quantas obras literárias vindas a público entre os séculos XV e XVII:

1.° um grupo de romances jogralescos que facilmente podem caracterizar-se como adaptações peninsulares de troços da gesta francesa;

2.° o auto do dramaturgo quinhentista português Baltasar Dias, intitulado Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno;

3.° a Tragicomedia Famosa de El Marqués de Mantua, da autoria do universalmente reputado poeta dramático espanhol Lope de Vega Carpio.

Sobre estes textos se encadearão, a par de algumas informações desgarradas, que rapidamente lhes esbocem o perfil, os resultados de uma leitura prioritariamente destinada a avaliar em que medida se conciliam ou separam, ao reaverem um comum quinhão de figuras e sucessos. A tragicomédia de Lope de Vega, porém, de feitura dramática mais habilidosa e amadurecida e de meditado alcance ideológico, será motivo para um levantamento um tanto mais ambicioso de intenções e procedimentos estéticos.

Os Romances Carolíngios

Comecemos então pelos romances, adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que são parte, e sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São, dissemo-lo atrás, romances protagonizados pelo marquês de Mântua, por Valdovinos e por Carloto.

No primeiro volume do Romancero General, Agustín Durán reúne sete sobre ligações e brigas entre tão afamadas personagens (números 355 a 361), mas são os três primeiros que nos importa pesquisar, porquanto foi sem dúvida neles que aprenderam o melhor da lição Baltasar Dias e Lope de Vega, apesar de não faltarem razões para se admitir que os restantes não eram desconhecidos de nenhum dos dramaturgos. Lope de Vega sobretudo deve ter tido também em mente o romance 358, o do anúncio da conversão da infanta moura Sevilha, por amor do cristão Valdovinos; dos outros, que interpretam os gestos desesperados da morica, ao saber da morte do amado, entoam o seu pranto ou enfatizam o seu apelo ao rei, talvez que a memória lhe tenha guardado alguns pormenores mais impressivos, mas é difícil precisar até que ponto os relembrou, nas tarefas da dramatização» In Maria Idalina Resina Rodrigues, Estudos Ibéricos, Da Cultura à Literatura. Pontos de Encontro, séculos XIII a XVII, Ministério da Educação, 1987, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987, Depósito Legal nº 17291.

Cortesia de ICLP/ME/JDACT

JDACT, Maria Idalina Rodrigues, Cultura e Conhecimento, Caso de Estudo, Literatura,