sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Gritos do Passado. Camila Läkberg. «Quantas vezes ela ouvira falar das estatísticas sobre todos os relacionamentos que naufragavam durante o primeiro ano da vida de um bebé? Bom, não fazia sentido preocupar-se com isso agora»

Cortesia de wikipedia e jdact

Verão de 1979

«(…) Agora foi a vez de Johann colocar o travesseiro na cara. Ele tentou bloquear o falatório interminável; ela era como um disco quebrado. Mas o seu travesseiro também foi arrancado. Ele sentou-se, de ressaca, e sua cabeça latejou como uma banda marchando. Já faz tempo que tirei a mesa do café da manhã. Vão ter que pegar algo na geladeira vocês mesmos. O traseiro imenso de Solveig rebolou para fora do quartinho que os dois irmãos ainda dividiam, e ela bateu a porta atrás de si. Eles não ousaram tentar dormir de novo; pegaram um maço de cigarro e acenderam um cada um. Podiam ficar sem o café da manhã, mas o cigarro melhorou o humor deles, causando uma ardência boa nas suas gargantas. Ontem à noite foi do cacete, hein? Robert riu e soprou anéis de fumaça no ar. Eu disse que eles tinham material de primeira em casa. Ele é director de uma companhia em Estocolmo. Graças a Deus, um sujeito assim pode ter do bom e do melhor. Johann não respondeu. Diferentemente do irmão, ele não curtia uma descarga de adrenalina provocada pelos arrombamentos. Em vez disso, passava vários dias, antes e depois, com uma enorme bola gelada de medo no estômago. Mas sempre fazia o que Robert mandava; nunca lhe ocorreu que pudesse agir de outro modo. O arrombamento da noite passada lhes rendera o maior lucro que tiveram em muito tempo. A maioria das pessoas agora tinha receio de deixar coisas caras nas casas de veraneio. Em geral, usavam coisas velhas, que de outra forma teriam jogado fora, ou aquisições de segunda mão, que lhes davam a sensação de ter comprado um tesouro, mesmo que fossem uma mer… Mas dessa vez eles tinham conseguido uma TV nova, um aparelho de DVD, um Nintendo e um monte de jóias que haviam sido da dona da casa. Robert venderia o material por seus meios habituais e conseguiria um bom dinheiro. Não que fosse durar muito tempo. O dinheiro roubado parecia sempre queimar um buraco nos seus bolsos e desaparecia depois de umas duas semanas. Eles o gastavam jogando, saindo e pagando as despesas dos amigos e com outros gastos necessários. Johann olhou o relógio caro que usava. Por sorte, a mãe deles não conseguia reconhecer um bem valioso quando via um. Se soubesse o quanto custava aquele relógio, a excepção

não terminaria nunca. Às vezes, ele se sentia aprisionado, como um hamster num carrossel, girando e girando enquanto os anos passavam. Nada mudara de facto desde que ele e o irmão eram adolescentes, e ele tampouco via possibilidade de isso ocorrer agora. A única coisa que dava sentido à sua vida era a única coisa que mantinha em segredo para Robert; uma intuição bem lá dentro lhe dizia que contar ao irmão não traria nada de bom. Robert apenas transformaria tudo em algo sujo com seus comentários grosseiros. Por um segundo, Johann permitiu-se pensar na maciez do cabelo dela contra sua face áspera e em como a mão dela parecia pequena quando ele a tinha entre as suas.

Ei, não fique aí sonhando acordado. Temos negócios a tratar. Robert levantou-se com o cigarro pendendo do canto da boca e foi o primeiro a sai pela porta. Como sempre, Johann o seguiu, pois era tudo que sabia fazer. Na cozinha, Solveig estava sentada em seu lugar de costume. Desde que Johann era um garotinho, desde aquele incidente com seu pai, ele a via sentada na sua cadeira junto à janela, os dedos remexendo ansiosos com o que estivesse à sua frente na mesa. Nas lembranças mais antigas, sua mãe era bela, mas ao longo dos anos a gordura foi-se acumulando em camadas mais e mais espessas, no rosto e no corpo. Solveig parecia estar em transe; os dedos tinham vida própria e nunca paravam de apanhar coisas e alisá-las. Fazia quase vinte anos que ela mexia com aqueles malditos álbuns de fotos, organizando e reorganizando tudo. Ela comprava álbuns novos e então rearranjava as fotos e os recortes. De um jeito melhor, mais elegante. Ele não era tão estúpido a ponto de não perceber que aquele era o meio pelo qual ela se apegava a tempos mais felizes, mas algum dia, com certeza, ela perceberia que aqueles tempos já tinham se passado havia muito. As fotos eram da época em que Solveig era bela. O ponto alto de sua vida fora o casamento com Johannes Hult, o filho mais novo de Ephraim Hult, o conhecido pastor da Igreja Livre e proprietário da fazenda mais próspera da região. Johannes era atraente e rico. Solveig podia ter sido pobre, mas era a garota mais linda de Bohuslän; todos diziam isso à época. E se mais provas fossem necessárias, seriam suficientes os artigos que ela guardara, de quando foi coroada Rainha de Maio por dois anos seguidos. Eram aqueles artigos e as muitas fotos em preto e branco dela, como uma bela jovem, que ela guardara e organizara com diligência a cada dia nos últimos vinte anos. Ela sabia que aquela garota ainda estava lá, em algum lugar debaixo de todas as camadas de gordura. Por meio das fotos, podia manter viva a garota, mesmo que ela deslizasse para mais e mais longe a cada ano que passava. Com um último olhar sobre o ombro, Johann deixou a mãe sentada na cozinha e seguiu Robert porta-fora. Como Robert dissera, eles tinham negócios a tratar.

Erica cogitou sair para dar uma volta, mas percebeu que não devia ser uma boa ideia naquele momento, com o sol lá no alto e o calor no máximo. Ela estava levando muito bem a gravidez até que a onda de calor chegou. Desde então, ela se movia como uma baleia suada, buscando desesperada um meio de se refrescar. Patrik, que Deus o abençoe, teve a ideia de comprar-lhe um ventilador de mesa, e ela agora o carregava consigo como um tesouro, para onde quer que fosse na casa. O único incómodo era ter que ligá-lo na corrente eléctrica, de modo que ela nunca podia sentar-se a uma distância de uma tomada maior do que a extensão do fio, o que limitava suas opções. Mas a tomada da varanda estava bem localizada, e ela podia acomodar-se no sofá com o ventilador na mesa à sua frente. Nenhuma posição era confortável por mais de cinco minutos, e ela ficava o tempo todo tentando se ajeitar. Às vezes, sentia um pé chutando as costelas ou algo como um punho acertando-lhe o flanco. Então era forçada a mudar de posição de novo. Ela não fazia ideia de como aguentaria mais um mês disso. Fazia apenas meio ano que ela e Patrik estavam juntos quando ela engravidou, mas estranhamente aquilo não incomodou nenhum dos dois. Ambos eram um pouco mais velhos, estavam um pouco mais certos do que queriam e não achavam que houvesse qualquer motivo para esperar mais. Só agora ela começava a se assustar, aos quarenta e cinco do segundo tempo, por assim dizer. Talvez eles não tivessem compartilhado o suficiente do dia a dia antes de embarcar nessa gravidez. O que aconteceria a seu relacionamento quando de repente surgisse um pequeno desconhecido, que iria requerer toda a atenção que antes eles podiam devotar um ao outro? A paixão enlouquecida e cega dos primeiros dias juntos já se diluíra, claro. Agora tinham bases mais realistas, mais quotidianas, sobre as quais construir a relação, com uma melhor compreensão das coisas boas e ruins de cada um. Mas e se, depois que o bebé nascesse, só restassem as coisas ruins? Quantas vezes ela ouvira falar das estatísticas sobre todos os relacionamentos que naufragavam durante o primeiro ano da vida de um bebé? Bom, não fazia sentido preocupar-se com isso agora. O que estava feito estava feito, e não havia como ignorar o facto de que tanto ela como Patrik ansiavam pela chegada dessa criança com todas as fibras de seus corpos. Ela esperava que esse sentimento de expectativa fosse suficiente para conduzi-los através das mudanças turbulentas que se aproximavam». In Camila Läkberg, Gritos do Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».

Cortesia de EdomQuixote/JDACT

JDACT, Camila Läkberg, Literatura,