quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Hélia Correia, A de Cólquida. Maria António Horster e Maria de Fátima Silva. «Assim sendo, Medeia só poderia ser responsabilizada por uma imprudência…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Como celebração de anos de companheirismo, Hélia Correia dedicou a Jaime Rocha, para lhe assinalar o aniversário, um conjunto de quatro breves textos em prosa poética, que representam uma releitura muito pessoal da cultura clássica e de alguns dos seus grandes mitos femininos. Reunidas sob o título de Apodera-te de mim (2002), estas composições testemunham um profundo conhecimento do mundo grego e constituem exercícios hermenêuticos em que Hélia Correia se encontra ela mesma intimamente implicada, estabelecendo um diálogo de épocas e de figuras que mutuamente se interrogam e iluminam. Deste conjunto, tivemos já oportunidade de nos debruçar sobre dois textos: o proémio Em Knossos, que representa uma reflexão sobre a cultura helénica no seu processo evolutivo, desde a civilização minoica até ao classicismo ateniense, no qual a afirmação da mulher enquanto ser cultural assume uma dimensão relevante; e Penthesiléa, que coloca as grandes questões do tempo, da memória e da linguagem adequada à expressão do mito, mesmo nas suas facetas mais interditas. Dirigimos agora a nossa atenção para a surpreendente figura de Medeia, protagonista de A de Cólquida. À semelhança do que se nos deparou nos textos antes analisados, também no caso desta Medeia a problemática feminina constitui o cerne da interpretação do mito, na linha das preferências que a Autora vem manifestando. Breve, este texto afasta-se das grandes linhas euripidianas, recuperando outros tópicos do mesmo mito a que a Antiguidade também não foi alheia. Efectivamente, as aventuras na Cólquida, a paixão pelo Argonauta e a vinda para a Grécia, aspectos que, em Eurípides, funcionam sobretudo como antecedentes da acção central, conheceram na épica arcaica e helenística, na lírica e na tragédia grega que rodeou Eurípides um conjunto diversificado de soluções (antes de Eurípides, que trouxe ao tema de Medeia uma leitura profundamente inovadora, outros tratamentos, mal conhecidos, tinham já abordado fases diversas do trajecto de vida da filha de Eetes. Assim, num poema perdido do ciclo épico que se intitulou Argonautica (século VII a. C.), o foco parecia incidir na viagem de Jasão e dos seus homens para a Cólquida, à conquista do velo de ouro, que veio a constituir o primeiro episódio relevante no mito de Medeia. Ainda em data anterior à peça de Eurípides (462 a. C.), Píndaro [Pi. 4.] dedicava alguns versos à façanha heróica da conquista do velo de ouro e ao contributo dado por Medeia ao sucesso dessa aventura. Esta etapa colca, implicando no sucesso da empresa uma Medeia já apaixonada, veio a tornar-se tema prioritário em futuros tratamentos como o que Apolónio de Rodes, no século III a. C., lhe dedicou em mais uma versão épica, os seus Argonautica. Por seu lado, o episódio em Corinto também não era original de Eurípides. Já nas últimas décadas do século VI a. C., num poema intitulado Korinthiaka e atribuído a Eumelo, Medeia, depois da vinda da Cólquida com Jasão, reinava sobre Corinto e, mesmo que involuntariamente, tornava-se responsável pela morte dos filhos, a quem sepultava no templo de Hera na intenção de os tornar imortais. Creófilo de Éfeso, por sua vez, ainda em data anterior a Eurípides, fazia de Medeia a assassina de Creonte e dos seus próprios filhos, vítimas da perseguição desencadeada pela casa real de Corinto; já em fuga para Atenas, a mãe não protegeu as crianças na convicção de que o pai o faria. Assim sendo, Medeia só poderia ser responsabilizada por uma imprudência, cabendo aos Coríntios a verdadeira culpa pelo infanticídio. A grande novidade de Eurípides, no regresso ao episódio de Corinto, esteve justamente em atribuir a autoria do infanticídio a Medeia, por razões de vingança pessoal).

A atracção pela figura da colca, que encontra aqui uma primeira manifestação na escrita de Hélia Correia, vem a desenvolver-se, anos mais tarde, numa versão dramática, intitulada Desmesura. Exercício com Medeia (2006). Esta primeira narrativa pode ser considerada como uma espécie de contraponto, tanto à versão euripidiana como a essa posterior abordagem que Hélia faz ao mito». In Maria António Horster e Maria de Fátima Silva, Hélia Correia, A de Cólquida, Imprensa da Universidade de Coimbra, Pombalina.uc.pt, Digitalis.uc.pt, Humanitas Supplementum, O Livro do Tempo, Escritas e reescritas, Annablume, UID/ELT/001196/2013.

Cortesia de IUdeCoimbra/JDACT

JDACT, Maria António Horster, Maria de Fátima Silva, Caso de Estudo, Universidade, Hélia Correia, Conhecimento,