domingo, 13 de setembro de 2020

Luís Miguel Rocha. A Mentira Sagrada. «Sentiu-se egoísta durante uns instantes, mas logo passou. Quando morreram?, questionou Schmidt não transmitindo qualquer emoção. Se os conhecia não transpareceu»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Tarcísio olhou para o chão à procura das palavras correctas que teimavam em fugir-lhe como água pelos dedos. Decidiu ser directo como o amigo. Schmidt não o permitiria de outra maneira.

O Statu Quo foi quebrado, atirou, levantando o olhar para um ponto qualquer na parede que tinha um quadro grande do Sumo Pontífice numa expressão neutra. Aguardou a reacção do austríaco. Desenvolve, foi a única resposta, com o sotaque germânico a sobrepor-se ao italiano, normalmente correcto. Tarcísio precisava mesmo da mente aguçada e lúcida do amigo. Nenhuma solução se apresenta sem que tenhamos todos os dados na nossa mão. Tarcísio optou novamente pelo relato conciso e frio dos elementos, por muito que lhe custasse. Mataram o Aragonês, o Zafer, o Sigfried está desaparecido, assim como o Ben Isaac e o filho, disparou os nomes e os factos à queima-roupa como se mencioná-los o livrasse deles e os transferisse para Schmidt. Sentiu-se egoísta durante uns instantes, mas logo passou. Quando morreram?, questionou Schmidt não transmitindo qualquer emoção. Se os conhecia não transpareceu. Durante a semana. Aragonês no Domingo, Zafer na terça, o Sigfried desapareceu na quarta. Desconhecemos há quanto tempo desapareceu o clã Isaac. Desapareceu a família inteira?, quis saber Schmidt. Sim. O casal e o herdeiro, completou Tarcísio. Quem tens a tratar disso? O nosso oficial de ligação com o SISMI e um enviado especial. Quem? O padre Rafael. Lembras-te dele? Claro que sim. Muito competente. Não precisas de mim, argumentou o austríaco. O assunto está em boas mãos.

Tarcísio não parecia tão convencido. Aliás, antes pelo contrário. Estava alvoroçado e agitado. Batia com um pé no chão como se estivesse ligado à corrente. Se isto nos explode na cara... A Igreja sempre sobreviveu a tudo e a todos, proferiu Schmidt. Não vejo razões para que não sobreviva agora. Não vês? Andam atrás de documentos importantes. Documentos que comprovam que... Que não comprovam nada, contrapôs o austríaco. Não se sabe quem os escreveu nem por que motivos. São apenas palavras. A ordem das palavras fere e mata, atalhou Tarcísio. As palavras têm a força que lhes dermos, discordou Schmidt sem alterar o tom de voz. É isso que defendes agora? Nada precisa da minha defesa. Muito menos a Igreja. Tarcísio levantou-se irritado e começou a andar de um lado para o outro com as mãos atrás das costas. Estamos em guerra, Hans. Estamos em guerra há 2000 anos. Sempre ouvi falar nessa guerra e, no entanto, nem sequer temos exército, ironizou Schmidt. Não consegues ver o que acontecerá se mãos alheias conseguirem os documentos?

Se bem recordo, o Papa Roncalli acautelou esse cenário. O acordo… O acordo acabou, interrompeu Tarcísio, levantando as mãos ao céu. Previa uma duração de 50 anos. Terminou há dias. Eu sei, Tarcísio. Mesmo assim não acredito que Ben Isaac se aproveitasse dos docu... Porque não? O acordo acabou. Pela primeira vez o padre austríaco olhou-o apreensivo. Porque eu conheci-o aquando da renovação do acordo. Ben Isaac poderá ser vítima, nunca vilão, afirmou o austríaco peremptório. Isso foi há 25 anos. Viste-o duas ou três vezes. Não esqueçamos que ele é..., judeu, disse-o como se se tratasse de uma falha profunda. Nós rezamos a um judeu, Tarcísio. Não é a mesma coisa, desculpou-se o cardeal. Não vejo como possa ser diferente. Ele nunca conheceu outra religião. Jesus fundou a Igreja Católica. Tarcísio, por favor. És o cardeal mais influente da Igreja Católica Apostólica Romana, actualmente. Jesus nunca conheceu a Igreja Católica ou qualquer outra herdeira do nome Dele. Nunca a fundou e, muito menos, pediu que a construíssemos. O assunto desconfortava Tarcísio. Era um ponto de afastamento entre os dois homens. Exasperava-o este pensamento demasiado livre de Schmidt, só lhe arranjara problemas. Relembrara justamente que essa era a principal razão para que o amigo se encontrasse em Roma nesta noite. Tornou a sentar-se e deixou que o silêncio se espraiasse pelo gabinete. Hans permanecia imóvel, de perna cruzada, o Austrian Eis, imperturbável. Estás preparado para amanhã?, acabou por perguntar Tarcísio. Ver-se-á quando o amanhã vier. Não te vou poder ajudar perante a congregação, Hans. Lamento, avisou o outro desajeitadamente. Lamentava genuinamente». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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