quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A Bagagem do Viajante. José Saramago. «A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas: uma couve portuguesa plantada na Austrália atingiu 2,40 metros de altura (por extenso e para não haver dúvidas: dois metros e quarenta centímetros)…»

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Saudades da Caverna

«(…) Não sei que autor de anteontem dizia que o melhor instrumento de medição das altas e baixas pressões económicas era os pequenos anúncios dos jornais. Achava o dito autor, e julgo que o conseguia demonstrar, que aquilo que se vende, de particular a particular, em bens de luxo ou objectos úteis, define de um modo bastante rigoroso uma situação económica geral. Claro que por este meu jeito tacteante de avançar na matéria se está já notando que me falta saber e capacidade para discutir a tese, nem creio que tal discussão adiantasse muito neste tempo de grandes concentrações económicas e de impérios comerciais. Acho preferível passar adiante, não me caiam em cima os coriscos da informática. Fique apenas desta introdução quanto basta para se compreender melhor o sobressalto de espírito que me trouxe o tema desta crónica. Certos usos e costumes (certas vendas, certas compras) não surgem por acaso, e para o assunto que hoje me ocupa nem sequer o apelativo de moda designa seja o que for, uma vez que a moda não é mais do que a difusão promovente de um uso primeiramente limitado. E chego desta maneira ao meu tema. Que razões profundas, que mecanismos, que vozes ancestrais, se estão definindo, movendo, articulando, nesta sociedade, para que se tivesse tornado tão usual uma terminologia que evoca tempos revolutos, sobretudo, e é isto que me parece mais importante, quando aplicada a lugares de ajuntamento, de repasto, isto é, onde o gregarismo é padrão. Que saudades da caverna latejam na memória inconsciente dos grupos, para que tenha surgido este aluvião de boites e restaurantes com nomes velhos? Que psicólogo ou psicanalista me explicará a razão de tantos cacos, carunchos, toscos, caixotes, choupanas, ferraduras, cubatas, cangas, chocalhos, naus, veleiros? E dos archotes, calhambeques, lareiras, carripanas, breques, baiúcas, chafarizes, tocas, braseiros e túneis?

Esta atracção do primitivo, que até na decoração dessas casas ganha aspectos de ideia fixa, quase agressiva, se por um lado pode significar a continuidade, em plano diferente, de certa atracção de contrários que nos caracterizou como sociedade particular (o infante dom Miguel e os arrieiros, o marquês de Marialva e o fado, os capotes brancos do Bairro Alto, os fidalgos pegadores de touros), há-de certamente obedecer a razões menos visíveis e mais gerais, as mesmas, talvez, que fizeram surgir bandas desenhadas cujos heróis são homens e' mulheres da pré-história, da idade da pedra, ainda incapazes de inventar a roda mas já enleados nos problemas e nos conflitos de hoje. Andaremos nós à procura de uma nova inocência, de um recomeço? A escolha daqueles nomes será movida por um obscuro e aparentemente contraditório rancor contra as sociedades de consumo? Ou será antes um reflexo de má consciência que leva a dar às coisas, não o nome que lhes cabe mas o nome que as nega, como se essa operação de mágica linguística extraísse o veneno da serpente? Se eu tiver um palácio e lhe chamar a minha barraca, afasto com isso o raio que é atraído pelos lugares altos? Em grande conta eu me teria se fosse capaz de dar resposta a tais perguntas. Mas não será melhor deixá-las intactas? Se o leitor as considerar ociosas, facilmente as esquecerá, depois de protestar contra a perda do meu tempo e do seu tempo. Mas se murmurar: E boa! Nunca tinha pensado nisso, então ganhei bem o meu dia. O que, posso garantir, não é todos os dias que acontece.

Elogio da couve portuguesa

A notícia correu o país inteiro, provocando o frémito das grandes ocasiões patrióticas: uma couve portuguesa plantada na Austrália atingiu 2,40 metros de altura (por extenso e para não haver dúvidas: dois metros e quarenta centímetros), e continua a crescer. Sob céus e climas estranhos, rodeada de cangurus, ameaçada certamente pelas tribos primitivas do interior, ao alcance do terrível boomerang, a couve portuguesa dá uma lição de constância e de fidelidade às origens, ao mesmo tempo que mostra ao mundo as nossas raras qualidades de adaptação, o nosso universalismo, a nossa vocação de grandes viajantes. E continua a crescer». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.

Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT

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