quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Idade Média. Umberto Eco. «Come trovasti, scellerata e brutta invenzion, mai loco in alcun core? Per te la militar gloria è distrutta…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O que a Idade Média nos deixou

«(…) Inspirando-se nas pesquisas dos árabes, a Idade Média presta muita atenção à óptica, e Roger Bacon declarava que era a nova ciência destinada a revolucionar o mundo: Esta ciência é indispensável para o estudo da teologia e para o mundo… A vista mostra-nos toda a variedade das coisas, e por ela se abre o caminho para o conhecimento de todas as coisas, como resulta da experiência. E são os estudos de óptica, juntamente com a experiência dos mestres vidreiros, que conduzem à invenção, quase casual e de origens um tanto ou quanto obscuras (há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem modificado muito: os óculos. À parte o uso que ainda hoje fazemos deles, os óculos exerceram uma influência de grande alcance na evolução do mundo moderno. Todos os seres humanos tendem a sofrer de presbiopia depois dos quarenta anos, e podemos considerar que numa época em que se lia por manuscritos, e durante metade do dia à luz de velas, a actividade de um estudioso se reduzia temivelmente a partir de uma certa idade. Mercê dos óculos, os estudiosos, os comerciantes e os artífices prolongaram e aumentaram as suas capacidades de aplicação. É como se as energias intelectuais daqueles séculos tivessem duplicado ou até decuplicado, subitamente. Se pensarmos como foi útil para o desenvolvimento científico norte-americano o facto de ter havido algumas dezenas de cientistas judeus que, fugindo ao nazismo, foram enriquecer a ciência e a técnica do Novo Continente (é em grande parte a eles que se deve o descobrimento da energia atómica e as suas aplicações), teremos uma pálida ideia do que a invenção dos óculos significou. Finalmente, é nos últimos decénios da Idade Média que aparece no Ocidente a pólvora de tiro (provavelmente já conhecida dos chineses, que a utilizavam para efeitos pirotécnicos). Tudo muda na arte da guerra, e 18 anos antes do fim oficial da Idade Média, perante a nova invenção do arcabuz, Ludovico Ariosto cantará:

Come trovasti, scellerata e brutta

invenzion, mai loco in alcun core?

Per te la militar gloria è distrutta:

per te il mestier de l’arme è senza onore;

per te il valore e la virtù ridutta

che spesso par del buono il rio migliore;

non più la gagliardia, non più l’ardire,

per te può in campo al paragon venire (Orlando furioso, XI, 26

E assim começa verdadeiramente, sob tão terrível agoiro, a obscura Idade Moderna.

Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos

A Idade Média elaborou não só uma constante tensão para o Além mas também um sentimento visionário do mundo terreno e da natureza. O homem medieval via o mundo como uma floresta cheia de perigos, mas também de revelações extraordinárias, e a Terra como uma extensão de regiões remotas povoadas por seres esplendidamente monstruosos. Extraía estas fantasias dos textos clássicos e de inúmeras lendas, e acreditava firmemente que o mundo estava povoado por cinocéfalos com cabeça de cão, ciclopes com um olho único no meio da testa, blémies sem cabeça e com a boca e os olhos no peito e criaturas com um lábio inferior tão proeminente que ao dormir cobrem com ele toda a cara para defender-se do ardor do sol; por seres com uma boca tão pequena que comem por um buraquinho utilizando caules de aveia, e por panotos com orelhas tão grandes que podem cobrir com elas todo o corpo; por artabantes que caminham inclinados para o chão como as ovelhas e sátiros com nariz adunco, chifres na testa e pés de cabra, ou por ciápodes, só com um pé que lhes serve de guarda-sol quando se deitam de costas no chão, por causa do calor do sol.

Tudo isto e muito mais (baleias em forma de ilha, onde São Brandão aproava ao navegar em mares remotos, os reinos da longínqua Ásia, onde abundavam pedras preciosas, e muitas outras fantasias), constituía o repertório do maravilhoso medieval. Se fosse só isto, estas maravilhas não seriam diferentes das que haviam fascinado a Antiguidade e o período helenístico. Mas a Idade Média consegue traduzir grande parte deste repertório do maravilhoso em termos de revelação espiritual». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN  978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,