domingo, 20 de fevereiro de 2022

Julia Navarro. O Sangue dos Inocentes. «Caminharam perto de uma hora entre penhascos formados por blocos calcários que terminavam na enorme rocha onde, desafiador ao olho humano, se encontrava o castelo de Montségur»

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Languedoq meados do sécalo XIII

«(…) Escapuliu-se do acampamento com passos rápidos e dirigiu-se ao bosque, certo que a qualquer momento apareceria o enviado de dona Maria. Estais atrasado, recriminou-o o homem que saiu ao seu encontro como se se tratasse de um espectro. Era um cabreiro que conhecia bem os caminhos da montanha. Não pude vir antes. Ou adormecestes, replicou o homem, de mau humor. Não, não adormeci, só que não posso sair do acampamento quando me apetece. Pois outros o fazem. Isso é uma surpresa! Surpreende-vos que entre os soldados recrutados à força existam alguns que têm familiares ali em cima? Julián calou-se. De modo que Fernando tinha razão. Havia quem entrasse e saísse de Montségur como de sua própria casa. Onde é que a senhora me espera? Segui-me até ao lugar. Caminharam perto de uma hora entre penhascos formados por blocos calcários que terminavam na enorme rocha onde, desafiador ao olho humano, se encontrava o castelo de Montségur. O cabreiro deteve-se junto de umas árvores que se encarrapitavam por um dos penhascos. Mal recuperara o fôlego quando se encontrou perante dona Maria. Julián, filho, quanto me alegra ver-te! Minha senhora... Vem, senta-te a meu lado, não temos muito tempo e temos de o aproveitar. Quero que me contes como estão as coisas ali em baixo. Os nossos espiões dizem que Hugues des Arcis conta com dez mil homens. Espero que o conde de Toulouse não se amedronte perante essa força e cumpra os seus compromissos para com esta terra. Não se trata apenas de fé, mas sim de poder. Que dizeis, senhora? Se Hugues des Arcis conquistar Montségur, acabou-se a liberdade na nossa terra.

O rei quer estas terras porque, sem elas, o seu reino não vale nada. Pensas que lhe interessam os cátaros? Não, filho, não te iludas, aqui não se luta por Deus, mas sim pelo poder. Querem o nosso país para a Coroa. Mas o papa quer erradicar a heresia! O papa sim, mas ao rei de França tanto lhe faz. Senhora, dizeis cada coisa...! Bem, não te cansarei com as minhas ideias, prefiro ouvir-te, ou melhor, que respondas às minhas perguntas. Durante uma hora, dona Maria interrogou Julián. Não houve pormenor acerca das forças de Hugues des Arcis sobre as quais não lhe colocasse perguntas. E tu, Julián? Continuas a ser um crente? Que sei eu! Estou confuso, senhora, já nem sei quem é Deus. Mas como é possível que digas isso? Enganei-me contigo? Sempre te considerei inteligente, por isso quis que estudasses e te tornasses dominicano... Contudo, a única coisa que quereis é que atraiçoe os meus irmãos! O que quero é que sirvas o Deus verdadeiro, e não o demónio que tens por Deus.

Julián persignou-se, espantado. Dona Maria atormentava-o com as suas ideias heréticas e fazia-o duvidar. Ainda recordava o dia em que o chamara para lhe dizer que encontrara o Deus verdadeiro, e que a partir desse momento ele também o deveria servir. Explicou-lhe que o mundo fora criado por uma divindade inferior, um demónio que encarcerara os verdadeiros anjos, e que estes anjos eram as almas humanas que apenas se libertariam com a morte. O corpo, disse-lhe, era uma prisão, o pior dos calabouços. Deus nada tinha a ver com a terra oblivionis. Era Ele o artífice do espírito, não da realidade material. Coexistiam duas criações, a má e a boa, a terrena e a espiritual. Os perfeitos, acrescentou, ajudam-nos a encontrar o caminho para fugir da prisão e para que a nossa alma se encontre no céu com essa parte do nosso espírito que voltará a tornar-nos inteiros. Vi dom Fernando. Meu filho? Vosso filho». In Julia Navarro, O Sangue dos Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.

Cortesia de BertandE/JDACT

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