quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Após uma viagem curta a bordo de um veículo utilitário, serpenteando por entre as vans de empresas que forneciam comida às companhias aéreas e os caminhões de combustível…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Embora eu nunca tivesse falado sobre ele com meus pais, os dois com certeza sabiam que eu já tivera meu quinhão de desilusões amorosas. Na realidade, eu às vezes desconfiava que a obsessão insistente de minha mãe com James Moselane era apenas o seu modo de consolar a nós duas. E que consolo maior poderia haver do que imaginar um futuro ideal em que eu morava na propriedade bem ao lado da sua casa, feliz para sempre?

Quando o Sr. Ludwig voltou, guardei a revista e tirei meu casaco de cima da cadeira para ele poder se sentar ao meu lado. Obrigada, agradeci ao pegar um dos cafés. O calor do copo foi uma bênção para minhas mãos nervosas. A propósito, o senhor não chegou a me dizer o nome da fundação que está pagando este nosso luxo. Ele removeu a tampa do seu café. Sou um homem cauteloso. Ele deu um golinho e fez uma careta. O que vocês, britânicos, têm contra o café? Bem, posso lhe dizer o nome: Fundação Skolsky. Açúcar?

Instantes depois, enquanto eu pesquisava freneticamente a Fundação Skolsky no Google, ouvi Ludwig dar uma risadinha e, quando olhei para cima, flagrei-o espiando descaradamente o meu celular. Não vai achar nada on-line, informou-me. O Skolsky prefere ser discreto. Coisas de bilionário. Talvez a intenção dele fosse fazer um comentário bem-humorado, mas não achei graça nenhuma. À nossa volta, o portão de embarque estava coalhado de funcionários da empresa aérea e passageiros com esperança de embarcar na frente, mas eu continuava sem saber quase nada sobre a nossa viagem. Desculpe, mas nunca ouvi falar na Fundação Skolsky, falei. A sede fica em Amsterdão, imagino... Ludwig se abaixou e pôs o copo no chão. Como eu disse, Skolsky é um homem discreto, um empresário interessado em arqueologia. Ele patrocina escavações no mundo inteiro. Encarei-o à espera de mais detalhes. Ele não deu nenhum, então me inclinei um pouco para a frente, deixando bem claro que esperava mais. Como por exemplo...?

Ludwig sorriu, mas algo na expressão predatória de seus olhos me disse que ele estava ficando irritado. Não posso dizer antes de chegarmos lá. É o protocolo da Skolsky. Fiquei tão incomodada com seu jeito desdenhoso que tive uma súbita lembrança do café intragável do aeroporto e das bem-intencionadas palavras de alerta ditas por James na noite anterior. A suposta inscrição das amazonas talvez fosse um trote..., ou coisa pior. Fora o que ele dissera. Peguei-me pensando mais uma vez em qual seria o meu papel em tudo aquilo. Estava ficando claro, e de forma bem desagradável, que Ludwig não sentia mais necessidade de cair nas minhas graças. Cheguei a desconfiar que o súbito declínio dos seus bons modos fosse um prenúncio da semana por vir. Qualquer pessoa normal prestaria atenção nesses sinais de alerta e iria embora enquanto ainda havia tempo. Mas eu não podia. O caderno vermelho da avó escondido na minha bolsa já derrotara o meu bom senso tempos antes. Está pronta?, perguntou Ludwig, pegando seu cartão de embarque. Vamos lá.

Segundos depois, descíamos a ponte de embarque. Eu ainda não sabia porque estávamos a caminho de Amsterdão, mas àquela altura tinha a certeza que seria inútil perguntar. E fiquei ainda mais desnorteada quando, em vez de subir a bordo, Ludwig parou para trocar algumas palavras com um homem de macacão e grandes protectores de ouvido de cor laranja. O homem primeiro me lançou um olhar desconfiado, depois abriu uma porta na lateral do portão de embarque e nos conduziu por alguns degraus instáveis de metal até chegarmos à pista, junto ao avião. Mesmo ali, do lado de fora, o ar estava tomado por barulho e cheiro de combustível queimado. Quando abri a boca para perguntar o que estava acontecendo, me senti sufocar com a fumaça do jacto e não consegui me fazer ouvir.

Após uma viagem curta a bordo de um veículo utilitário, serpenteando por entre as vans de empresas que forneciam comida às companhias aéreas e os caminhões de combustível, paramos ao lado de outro avião. Só nessa hora, quando vi minha mala trocar de mãos e desaparecer dentro do bagageiro, me abordei de que nosso suposto voo para Amsterdão fora apenas um disfarce cuidadosamente planeado. Mas não houve tempo de questionar o Ludwig sobre a mudança no nosso destino, pois, após um controle de segurança dos mais superficiais, fomos conduzidos depressa ao avião por uma escada de fundos. Belo acessório, comentou Ludwig quando o detector de metais emitiu um bipe ao passar por meu bracelete de bronze. A senhora usa isso como arma? Ainda não, mas posso vir a usar, retruquei, tornando a baixar a manga. Ele não precisava saber que o bracelete pertencera à minha avó e que eu o havia desenterrado da minha gaveta de lingerie poucas horas antes, como um marco inicial daquela inesperada aventura. Até onde Ludwig sabia, eu aceitara viajar por causa do dinheiro e da possível glória académica; não queria que ele descobrisse quanto aquilo era pessoal para mim. Se Skolsky podia se manter discreto, eu também podia». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

Anne Fortier, JDACT, Literatura,