quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Uma História das Orgias. Burgo Partridge. «Os Gregos eram idealistas e entusiastas por tudo o que interessava à sua vida, consideravam a juventude como um bem especialmente precioso e as alegrias dessa fase como a suprema felicidade»

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«A orgia é a válvula de escape de uma pressão como a do vapor de água; é a expulsão de histeria acumulada pela abstinência e a autocontenção e, assim sendo, tende igualmente a partilhar dessa natureza de fenómeno histeróide ou catártico. Toda a forma de autocontenção acarreta as suas tensões peculiares. O Homem encontra-se na constrangedora contingência de trazer em si mesmo, em simultâneo, as inclinações do indivíduo civilizado e as do mero animal, as quais há que procurar conciliar, normalmente em detrimento das últimas. Mas essa pressão, progressivamente crescente, não pode ele aguentá-la perpetuamente; de modo que se valerá, para todos os tipos de tensão, de uma válvula de escape, que é a orgia. Muitas das orgias, no entanto, não são tidas geralmente como tal. As guerras, por exemplo, num certo sentido, são uma forma de orgia, extremada e desagradável; e, catalogáveis muito lá para o fim da escala de valores da espécie, deparamos com as discussões em reuniões sociais ou cocktails, as partidas de mau gosto, pregadas por caixeiros-viajantes grosseiros, as pequenas escapadelas de maridos ocasionalmente infiéis, em suma, uma longa lista. Neste livro só se incluem as orgias de carácter ou origem sexual, e isto por dois motivos concomitantes, a saber: o superior interesse que representam para toda a gente e as dificuldades que obstam ao reconhecimento e definição, propriamente como orgias, de algumas delas de outra natureza. A orgia serve ao propósito útil de não somente prover ao alívio de tensões causadas por abstinências (necessárias, estas, ou não), mas também de reanimar por contraste o apetite para as monótonas temperanças que representam parte inevitável da vida quotidiana. Daí ter sido utilizada por certas comunidades sociais tão marcadamente diferentes entre si como por exemplo, os povos da Grécia Antiga e (essa, de má vontade) a Igreja cristã medieval. Existe ainda, todavia, mais uma espécie de orgia: a individual. Essa não é, na verdade, essencialmente organizada, nem tolerada pelo Estado ou pela sociedade, visto que surge da equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo, face à sociedade ou ao Estado com o sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige. Essa imputação é muitas vezes justificada, sendo, por outro lado, algumas vezes errónea ou inexactamente concebida por si. Estas últimas são as mais interessantes e menos banais: o rebelde é aí uma figura mais perplexiva do que conformista e, neste particular campo de estudo, foi ele o que nos mereceu atenção mais acurada. Caso algum desses tipos tenha recebido um tratamento desproporcionadamente extenso da nossa parte, esperamos que sejam compreendidos os nossos motivos de autor. Ambas as espécies de orgia, a do conformista e a do rebelde, podem ser reduzidas a um só e mesmo princípio, o do escape a uma qualquer tensão intolerável. Uma delas poderá bem lograr êxito, desde que incida sobre a verdadeira raiz do mal consumptivo; e, se não a acompanharem mui aflitivos sentimentos de culpa e auto-repulsa, é provável até que continue a funcionar sem maiores sobressaltos. A outra espécie, a do rebelde, pode também ser satisfatória, se é que a equação imputadora da opressão à responsabilidade do meio social se prova legítima; mas, mesmo assim, o orgiasta expõe-se a permanecer um solitário e, tudo somado, um indivíduo nada feliz, pois ter-se-á provavelmente excedido na sua peculiar forma de reacção, que o terá arrastado até a um grau de licença que não lhe será propriamente inata. Os dois primeiros capítulos versam sobre os orgiastas da espécie conformista (Grécia e Roma), mas foi uma ou outra dessas duas diferenciadíssimas modalidades que os subsequentes rebeldes tenderam a escolher como norma, motivo pelo qual importa muito que se tenham presentes à lembrança as naturezas latina e helénica, e então estará aberto o caminho a uma tentativa de apreciação ética do assunto». In Prefácio

Aos que pensam que as grandes realizações e o êxito na vida dependem de subtileza mental e destreza verbal e que a inteligência é incompatível com a ingenuidade, a esses o estudo da maneira de viver e do pensamento dos Gregos provocará uma reveladora surpresa. Como nação, os helenos realizaram maravilhas de arte, de pensamento e de teorização política tais que não encontraram rivais que os superassem, se é que jamais foram ao menos igualados, por mais de uma dúzia de séculos. Não obstante, no que diz respeito à vida prática de cada dia, os Gregos baseavam o seu comportamento e os seus ideais num hedonismo extraordinariamente simplório e sensualístico. Diferiam da maioria dos povos modernos ao serem imunes a essa moléstia que a tanta gente aflige hoje em dia, a fixação num alvo ou objectivo na vida, excluídos todos os demais, e a busca semiobsessiva desse absorvente objectivo, acompanhada da subestimação de quaisquer outras alternativas possíveis.

Os Gregos eram idealistas e entusiastas por tudo o que interessava à sua vida, consideravam a juventude como um bem especialmente precioso e as alegrias dessa fase como a suprema felicidade. A beleza e o amor eram, acima de tudo, votados aos prazeres da existência, que eles almejavam, e o ideal proclamado pelos seus bardos. A saúde merecia-lhes apreço, porquanto sem ela não se alcançaria facilmente a felicidade, e esta era a única finalidade da vida. Saborear prazenteiramente a vida em geral era uma prerrogativa digna de se batalhar por ela, segundo julgava Sólon. Por toda a parte, nos seus escritos e na vida particular de cada cidadão, os esforços dos Gregos denotavam anseios idealísticos; e não pelo dinheiro nem tão-somente pela sede de prestígio, nem ainda por alguma esdrúxula situação na existência humana. A cultura helénica é, por inteiro, um hino em louvor do prazer, cuja natureza era uma intensa e requintada sensualidade. Em todos os níveis intelectuais, o povo discernia a essencial parte que o materialismo voluptuoso representava nas coisas humanas. Só depois de velho é que Sófocles emitiu a conhecida observação de que a velhice merece ser louvada, porque nos liberta da sujeição à sensualidade. A atitude do grego perante o desejo era muito diversa» In Burgo Partridge, Uma História das Orgias, 2003, Edições Século XXI, Colecção Percursos/História, 2003, ISBN 972-829-325-9.

Cortesia de ESéculoXXI/Papelmunde/JDACT

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