quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Umberto Eco. Idade Média. «As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica (e o neoplatonismo influencia grandemente o pensamento medieval…»

Cortesia de wikipedia, jdact

Em que sentido a Idade Média foi radicalmente diferente dos nossos tempos

«(…) Talvez nunca alguém tenha exprimido melhor este aspecto da psicologia medieval do que Johan Huizinga, no seu Outono da Idade Média: A grande verdade do espírito medieval está contida nas palavras de São Paulo aos coríntios: Videmus nunc per speculum et in ænigmate, tunc autem facie ad faciem (agora vemos obscuramente como por um espelho, mas, então, veremos directamente). A Idade Média nunca esquece que qualquer coisa será absurda se o seu significado se limitar à sua função imediata e à sua forma fenoménica, e que todas as coisas se estendem em grande parte pelo Além. Esta ideia é-nos também familiar, como sensação não formulada, quando, por exemplo, num momento de tranquilidade, o ruído da chuva nas folhas das árvores ou a luz da lâmpada em cima da mesa nos dão uma percepção mais profunda do que a percepção do dia a dia que serve para a actividade prática. Pode, por vezes, aparecer na forma de uma opressão doentia que nos leva a ver as coisas como se impregnadas de uma ameaça pessoal ou de um mistério que deveríamos conhecer mas que não pode ser conhecido. Mais frequentemente, porém, enche-nos da tranquila e confortante certeza de que também a nossa existência participa neste sentido secreto do mundo.

O homem medieval vivia, efectivamente, num mundo cheio de significados, referências, espíritos, manifestações de Deus nas coisas, e numa natureza que falava continuamente uma linguagem heráldica, em que um leão não era só um leão, uma noz não era só uma noz e um hipogrifo era tão real como um leão porque era, como ele, um sinal, existencialmente insignificante, de uma verdade superior, e o mundo inteiro parecia um livro escrito pelo dedo de Deus. Já se falou de situação neurótica, mas no fundo era uma atitude que prolongava a actividade mitopoética do homem clássico elaborando novas figuras e referências em harmonia com o ethos cristão, reavivando por meio de uma nova sensibilidade ao sobrenatural aquele sentido do maravilhoso que o classicismo tardio já tinha perdido há muito, ao substituir os deuses de Homero pelos deuses de Luciano. Neste sentido, o homem medieval atribui um significado místico a todos os elementos do mobiliário do mundo: pedras, plantas, animais.

https://youtu.be/Pj2iE7kbCCU

As justificações filosóficas desta atitude têm, basilarmente, duas origens. Uma é de origem neoplatónica (e o neoplatonismo influencia grandemente o pensamento medieval, ainda que por fontes frequentemente de segunda mão como Pseudo-Dionísio, o Areopagita). É o próprio Pseudo-Dionísio que, ao colocar o problema dos nomes divinos e, portanto, de como se pode definir e representar Deus, diz que a divindade longínqua, incognoscível e não nomeável é bruma luminosíssima do silêncio que ensina misteriosamente…, treva luminosíssima…, não é um corpo nem uma figura nem uma forma e não tem quantidade nem qualidade nem peso, não está num lugar, não vê, não tem um tacto sensível, não sente nem cai sob a sensibilidade…, não é alma nem inteligência, não possui imaginação ou opinião, não é número nem ordem nem grandeza…, não é substância nem eternidade nem tempo…, não é treva nem é luz, não é erro e não é verdade, e assim por diante ao longo de páginas e páginas de fulgurante afasia mística (De Mystica Theologia)» In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN  978-972-204-479-0.

 Cortesia PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,