quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Umberto Eco. Idade Média. «É na Idade Média que se começa a comer sentado à mesa (os romanos comiam reclinados em leitos) e a usar garfo; e é também na Idade Média que aparece o relógio de escapo, antepassado directo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Idade Média não foi apenas uma época de ortodoxia triunfante.

«(…) São de inspiração apocalíptica os movimentos dos flagelantes, que surgem em Itália no século XIII, num clima de ortodoxia, e se transferem para a Alemanha como movimento anárquico-místico de fundo revolucionário; de clara derivação apocalíptica serão os Irmãozinhos do Livre Espírito, ou beguinos, que se difundem na Europa do século XIII em diante, e os amauricianos, sequazes de Amaury de Bène… A Idade Média é várias vezes percorrida por estes ventos de revolta, em que um grupo se considera a única igreja legítima, legitimando-se com o seu rigorismo (que, estranhamente, desembocava com frequência na licença, como se a consciência da sua perfeição espiritual lhes consentisse maior despreocupação no trato com as misérias da carne). Para o fim da Idade Média e na aurora da Idade Moderna, o milenarismo apocalíptico parece cada vez mais aparentado com movimentos políticos, como acontece com a ala radical hussita na Boémia (os taboritas), para no século XVI desembocar na revolta dos camponeses e na pregação de Thomas Munzer, que apocalipticamente se intitula a foice que Deus aguçou para ceifar os inimigos e pensa o milénio como uma sociedade igualitária e comunista (e nesse sentido será depois reavaliado por pensadores marxistas).

Mas vale a pena reflectir sobre outra contradição fundamental da Idade Média: por um lado, cria um sentido da História e uma tensão para o futuro e a mudança; por outro, é uma época em que a maioria dos humildes, e certamente os religiosos dos mosteiros, vive segundo o ciclo eterno das estações e, no âmbito do dia, segundo as horas litúrgicas: matinas, laudes, prima, terça, sexta, nona, vésperas, completa.

O que a Idade Média nos deixou

Ainda hoje usamos, em grande parte, a herança desta época. Embora conhecendo já outras fontes de energia, ainda usamos os moinhos movidos pela água ou pelo vento, já conhecidos dos antigos, na China e na Pérsia, mas que só depois do ano 1000 são introduzidos e aperfeiçoados no Ocidente. E parece que deste legado se deve fazer bom uso agora que, com a crise do petróleo, se reconsidera seriamente a energia eólica. A Idade Média aprende muito da medicina árabe, mas em 1316 Mondino Liuzzi publica o seu tratado de anatomia e efectua as primeiras dissecções anatómicas de corpos humanos, dando início à ciência anatómica e à prática cirúrgica no sentido moderno do termo.

As nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão assistir às cerimónias religiosas. A Idade Média inventa as liberdades comunais e um conceito de livre participação de todos os cidadãos nos destinos da cidade, e ainda hoje as autoridades citadinas residem nos palácios destas comunas. Nestas mesmas cidades, surgem as universidades: a primeira aparece, se bem que em forma embrionária, no ano de 1088 em Bolonha; é a primeira vez que uma comunidade de professores e estudantes, com os primeiros na dependência económica dos segundos, se constituiu fora do poder do Estado ou da Igreja.

Nascem nestas mesmas cidades várias formas de economia mercantil e nelas têm origem a banca, a carta de crédito, o cheque e a letra de câmbio. Mas são inúmeras as invenções medievais que nós ainda hoje usamos como se fossem coisas do nosso tempo: a chaminé, o papel (que substituiu o pergaminho), os algarismos árabes (adoptados no século XIII com o Liber Abaci, de Leonardo Fibonacci), a contabilidade por partidas dobradas e, com Guido d’Arezzo, os nomes das notas musicais, e há quem mencione ainda os botões, as cuecas, as camisas, as luvas, as gavetas dos móveis, as calças, as cartas de jogar, o xadrez e os vitrais. É na Idade Média que se começa a comer sentado à mesa (os romanos comiam reclinados em leitos) e a usar garfo; e é também na Idade Média que aparece o relógio de escapo, antepassado directo dos relógios mecânicos modernos. Ainda hoje assistimos com frequência a contendas entre o Estado e a Igreja e experimentamos sob formas diferentes o terrorismo místico dos entusiastas de outrora; é da Idade Média que herdamos o hospital, e as nossas organizações turísticas continuam a inspirar-se na gestão das grandes vias de peregrinação». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN  978-972-204-479-0.

 Cortesia PdQuixote/JDACT

 JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,