domingo, 25 de setembro de 2011

Arte e Artistas em Portugal. Os Anos 70. Parte Ia. «Contudo, não basta o período de alta especulativa do valor das obras de arte a que se assistiu em meados de 1973 para concluirmos que existia uma dinâmica efectiva e consistente de mercado»

Pires Vieira, Des-Construções, 1974

Julião Sarmento, Faces (detalhe), 1976
Cortesia de cvc

«Nas vésperas da revolução democrática de 1974, Portugal vivia uma conjuntura bastante desfavorável. Em primeiro lugar, colocava-se a questão de uma guerra colonial prolongada e inconclusiva. A tardia e pouco eficaz abertura do sistema político promovida pelo governo de Marcelo Caetano desde 1968 e o desgaste das estruturas institucionais do Estado Novo, com um núcleo político incapaz de resolver o impasse a que o país chegara, geravam um governo caracterizado pela lenta agonia da luta pela sobrevivência, extremamente debilitado perante a comunidade internacional. Em segundo lugar, a insatisfação geral e as dificuldades económicas e sociais da população caracterizavam a realidade isolacionista de um país que se revia ainda na famosa expressão "orgulhosamente sós", comandado por uma classe dirigente dependente de valores políticos e ideológicos ultrapassados.
Neste contexto, martirizada pela longevidade do regime, a sociedade portuguesa sofreu os efeitos negativos da intervenção política na dinâmica cultural. A relativa abertura do sistema no período final do regime reforçou inclusivamente a percepção do abismo que separava a realidade social e artística do nosso país da dinâmica internacional da contemporaneidade. De qualquer modo, não deve ficar a ideia de que antes do levantamento militar democrático de 25 de Abril nada existia e que depois tudo se realizou e concretizou com sucesso, pois a ausência de adequadas políticas culturais foi contínua e persistente.
No que diz respeito ao contexto artístico e, em particular, à realidade das artes plásticas, o período de transição ideológica e política que caracterizou o nosso país na década de 70 apresenta uma complexa multiplicidade de referências, contribuindo indirectamente para abrir uma nova etapa na actividade artística e cultural. Se é verdade que as reformas empreendidas durante o período marcelista possibilitaram uma maior aproximação à situação internacional, não é menos certo que a política cultural de base traduzia uma ineficácia institucional expressa na falta de museus ou centros de arte contemporânea, na debilidade ou inexistência de mercado e na quase total ausência do apoio do Estado às tendências estéticas contemporâneas.
Eduardo Luiz, O 7º disfarce de Zeus, 1972
Cortesia de cvc

Ainda assim, com as medidas económicas tomadas pelo novo governo de Marcelo Caetano, a par das encomendas para a sede da Fundação Gulbenkian e da criação dos Prémios Soquil (1968-1972), o mercado de arte começa a dinamizar-se e a criar uma clientela que vai despertando para a arte moderna em detrimento de um gosto oitocentista enraizado. Contudo, não basta o período de alta especulativa do valor das obras de arte a que se assistiu em meados de 1973 para concluirmos que existia uma dinâmica efectiva e consistente de mercado. Este pequeno "boom" em torno do comércio de arte em Lisboa e Porto traduziu-se na proliferação de galerias e outros espaços expositivos. No final da década de 60 e ao longo da seguinte, no Porto inauguram a Zen (1970) e o Módulo-Centro Difusor de Arte (1975), em Lisboa a Buchholz (a partir de 1965, na R. Duque de Palmela), a Dinastia (1968), a Judite da Cruz, a S. Mamede (1969), a Quadrum (1973) e o segundo espaço do Módulo (1979), e a Ogiva em Óbidos (1970). A par da acção desenvolvida na divulgação e formação de vários artistas por estas galerias, em particular pela Galeria Quadrum e pela Galeria Ogiva que desenvolveu uma estratégia de descentralização, o CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra) teve igualmente um papel importante na experimentação e promoção de novas atitudes estéticas, com acontecimentos tão significativos como Minha Nossa Coimbra Deles (1973), Arte na Rua ou 1000001º Aniversário da Arte (1974). Estes actos simbólicos, "happenings" e "performances" pretendiam alertar a comunidade para o atraso das instituições e gerar a necessária consciencialização da urgência do trabalho a realizar.

Sá Nogueira, Erotropo, 1970.
Cortesia de cvc

De suma importância foi a reestruturação da secção portuguesa da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte), em 1969, mas, sobretudo, a emergência de um discurso crítico e actual por parte de Ernesto de Sousa. Crítico, comissário e artista, Ernesto de Sousa foi uma figura controversa no país de então, desenvolvendo uma estratégia de ruptura e descontinuidade para com os cânones estabelecidos. Depois de uma incursão pelo cinema e pela estética neo-realista enveredou por uma arte experimental com um forte cunho conceptual, em plena sintonia com o que se fazia fora do país. Visita a Documenta de Kassel em 1972, onde conhece pessoalmente Joseph Beuys e contacta com as ideias de Harald Szeemann, facto que marcaria o seu pensamento crítico e contribuíria para trazer novas problemáticas para o debate nacional, tais como a desmaterialização da obra de arte, a noção de "obra aberta", o artista como "operador estético" ou o papel activo do espectador. Da sua actividade como comissário e promotor de projectos devemos considerar os Encontros do Guincho (1969), Nós não estamos algures (1969), O meu corpo é o teu corpo (1971) e as exposições integradas na AICA Do Vazio à Pró-Vocação (1972) e Projectos-Ideias (1974), para além do marco histórico da década: a Alternativa Zero (1977).

As mortes de Eduardo Viana (1967) e de Almada Negreiros (1970), assim como a primeira grande retrospectiva de Vieira da Silva no nosso país, na Fundação Gulbenkian (1970), marcam, por assim dizer, o início de um novo período no panorama da arte nacional». In Alexandre Melo, Centro Virtual Camões.

Cortesia de CVirtual Camões/JDACT