terça-feira, 27 de setembro de 2011

Luís de Camões. A Morte de D. Ignez. O Episódio. Ia. «Estavas, linda Ignez, posta em socego, de teus annos colhendo doce fruto, naquelle engano da alma, lédo, e cego, que a fortuna naõ deixa durar muito; nos saudosos campos do Mondego...»

Cortesia de costapinheiro

NOTA: Texto na versão original

A Morte de D. Ignez de Castro
Canto III dos Lusíadas

Episódio
Luís de Camões

CXVIII
……………………….
O caso triste, e digno de memoria,
Que do sepulchro os homes desenterra,
Aconteceo da misera, e mesquinha,
Que despois de ser morta foi Rainha.

CXIX
Tu só, tu puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Déste causa á molesta morte sua,
Como se fora perfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua,
Nem com lagrimas tristes se mitiga,
He porque queres aspero, e tyrano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

CXX
Estavas, linda Ignez, posta em socego,
De teus annos colhendo doce fruto,
Naquelle engano da alma, lédo, e cego,
Que a fortuna naõ deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando, e ás hervinhas,
O nome que no peito escripto tinhas.

CXXI
Do teu Principe alli te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam;
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus formosos se apartavam;
De noite em doces sonhos que mentiam,
De dia em pensamentos que voavam;
E quanto em fim cuidava, e quanto via,
Eram tudo memorias de alegria.

CXXII
De outras bellas Senhoras, e Princezas,
Os desejados thalamos engeita;
Que tudo em fim, tu puro Amor, desprezas,
Quando hum gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas
O velho pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo, e a phantasia
Do filho, que casar-se naõ queria:

CXXIII
Tirar Ignez ao Mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso;
Crendo co'o sangue só da morte indina,
Matar do firme amor o fogo acceso.
Qual furor consentio, que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do Furor Mauro, fosse alevantada
Contra huma fraca dama delicada!

CXXIIII
Traziam-na os horrificos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade,
Mas o povo com falsas e ferozes
Razões á morte crua o persuade.
Ella com tristes e piedosas vozes,
Sahidas só da mágoa, e saudade
Do seu Principe, e filhos, que deixava,
Que mais que a propria morte a magoava:

CXXV
Para o Ceo crystallino alevantado
Com lagrimas os olhos piedosos;
Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Hum dos duros ministros rigorosos:
E despois nos meninos attentando,
Que taõ queridos tinha, e taõ mimosos,
Cuja orphandade como mãi temia,
Para o avô cruel assi dizia:



CXXVI
Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento;
E nas aves agrestes, que sómente
Nas rapinas aerias tem o intento;
Com pequenas crianças vio a gente,
Terem taõ piedoso sentimento,
Como co'a mãi de Nino já mostráram,
E co'os irmãos que Roma edificáram:

CXXVII
Ó tu, que t[~e]es de humano o gesto, e o peito,
(Se de humano he matar h[~u]a donzella
Fraca, e sem força, só por ter sujeito
O coraçaõ a quem soube vencella)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o naõ t[~e]es á morte escura della:
Mova-te a piedade sua, e minha,
Pois te naõ move a culpa que naõ tinha.
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Cortesia de poesiadiversidade

In Project Gutenberg, 2007, A Morte de D. Ignez, Código ISO 8859-1, Produção de Tiago Tejo.

Continua
Cortesia de Typographia Rollandiana, Lisboa, 1824/JDACT