domingo, 11 de setembro de 2011

Leituras. Maria Antonieta Costa. Parte XX. O Segredo de Afonso III. «Naqueles anos em que as pestilências eram o pão-nosso de cada dia, o rei não se podia queixar de ter vivido pouco. Na verdade, quando o comum dos mortais não aspirava ultrapassar os quarenta anos, contar sessenta e oito primaveras era uma grande proeza!»

Cortesia de purl

Lisboa. Paço Real de Enxobregas. l6 de Fevereiro, 1279
«Desde que saíra do convento da Ordem dos Cónegos Regrantes de São Vicente de Fora, Madragana sentia-se mais confortada com a sua sorte. O rei ia morrer. Só Deus saberia quantos dias de vida lhe restavam ainda, mas, pelo menos, ela tinha conseguido assegurar que os factos que poderiam levar ao seu desaparecimento fossem trazidos ao conhecimento de todos. Perdida nos seus pensamentos, foi, no entanto, chamada à realidade pelo som abafado dos passos de uma outra montada atrás da sua. Estaria a ser seguida? Fora, sem dúvida, uma aventura ter saído do Paço de Enxobregas sem companhia. Puxou os arreios e os cascos da sua égua puro-sangue lusitano aceleraram, escorregando repetidamente, descendo as gastas e luzidias lajes de calcário das ruelas da Alcáçova em direcção ao rio. Depois de acenar aos guardas com o lenço vermelho-sangue por que era reconhecida, saiu pela Porta do Sol, passou a Porta do Chafariz dos Cavalos e, já em frente do Tejo, virou à esquerda, em direcção ao Paço.
Depois de largar a égua na estrebaria, dirigiu-se aos seus aposentos e, num corrupio, chamou Gontinha, a sua fiel serviçal, para a ajudar a despir o manto.
(…)
Madragana lançou-lhe um sorriso de agradecimento, já por cima do ombro, e desapareceu nos corredores do Paço, dirigindo-se ao quarto do rei. Quando entrou na câmara, o colossal leito real emergia da penumbra. As tocheiras, acesas e presas nas paredes, emprestavam ao cenário um aspecto um tanto ou quanto fantasmagórico. As sombras dos presentes erravam pela alcova, quais espectros'! Sentiu o peito apertado. Respirava-se mal lá dentro. O cheiro da humidade que escorria nos cantos das paredes de pedra misturava-se com o hálito podre do enfermo, que empestava o ar, apesar da proximidade da revigorante brisa do mar que entrava Tejo acima.

Cortesia de wikipedia

Da cama de carvalho, embora austera, sobressaíam a talha, a exagerada altura do colchão e a sumptuosa manta superior, toda bordada a fio de ouro. Naquela cama, já de si alta, não havia um, nem sequer dois, mas o número profético de três colchões. O corpo do soberano repousava no cimo daquela pilha, quase inacessível ao olhar de quem permanecia ao nível do solo, tal como um dos seus inexpugnáveis castelos. Por isso, os físicos encontravam-se encavalitados em dois escanhos, um de cada lado, para poderem aceder ao enfermo. Naqueles anos em que as pestilências eram o pão-nosso de cada dia, o rei não se podia queixar de ter vivido pouco. Na verdade, quando o comum dos mortais não aspirava ultrapassar os quarenta anos, contar sessenta e oito primaveras era uma grande proeza! O nascimento no seio da fidalguia significava, entre outros privilégios, boa comida na mesa e uma boa nutrição. Por isso, por muitas vitórias que tivesse desfrutado em vida, o rei morria também em glória: morria velho.
Acabava os seus dias com o dobro da idade com que tinha partido a grande maioria dos seus súbditos e até alguns dos seus filhos. A velhice coroava todos os seus feitos. Moribundo e rodeado por grande número dos seus validos, o monarca repousava sobre três colchões de penas de ganso que representavam as três primeiras criações de Deus no universo:
  • O Caos,
  • a Terra,
  • o Céu.


Cortesia de revelarlxcmlisboa e wikipedia

O rei estava depositado sobre o último, ou seja, no Céu. A cobri-lo, duas grossas almocelas de lã de ovelha, .mais a colcha de seda. A envolver o seu arquejante corpo quase cadáver, três camisas de linho. Isto tudo apesar das febres que o faziam derreter-se em suor. Para Madragana, a cena era ao mesmo tempo patética e ridícula. O rei estava a morrer e continuava excomungado em consequência dos seus agravos ao clero. Primeiramente, os bispos lançaram o interdito sobre o reino. Durante sete anos de maldição, o país ficou à deriva sem sacerdotes. Não houvera pároco temente e honesto que aceitasse baptizar os recém-nascidos. Desoladas mães viam os seus filhos morrer poucas horas depois de terem vindo a este miserável mundo, sem os poderem salvar do pecado original com o sacramento do baptismo. Os noivos não se podiam casar. As igrejas estavam fechadas e não se encontrava um confessor.

E que transtorno com os mortos! Para se encontrar padre que quisesse oficiar um funeral era preciso pagar um bom punhado de maravedis. E a situação agravou-se ainda mais quando os clérigos começaram a passar fome por falta do dízimo e de outras dádivas que o povo, já zangado, teimava em não pagar. Que tempos! Tudo por culpa do rei». In Maria Antonieta Costa, O Segredo de Afonso III, Clube do Autor, 2011, ISBN 978-989-8452-28-3.

Cortesia do Clube do Autor/JDACT