sábado, 10 de setembro de 2011

Leituras. Parte XIX. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. O Besouro. «O rei estava em Coimbra, nos paços de Santa Clara, ao pé da mãe, quando recebeu a notícia, onde se lhe propunha ainda uma dupla vigilância, se necessária, ao seu meio-irmão, Afonso Sanches, exilado em Castela e sempre irrequieto»

Cortesia de pedroeinesparasempre

O Besouro
«Constança, ao sentir nesses primeiros dias de 1321 o afastamento do rei, transformou todo o seu desejo em mágoa e tristeza, que são duas formas adulteradas de amor. O amor é, no fundo, a sublimação da mágoa, enquanto que a tristeza é a liquefacção do próprio amor. As rosas, mesmo que miúdas e despretensiosas, revelavam os primeiros espinhos. Constança desfez as suas duas tranças que lhe caiam até à cintura, e que davam já por essa altura um ar matrimonial. Fechou-se praticamente no seu quarto, debulhada em lágrimas, entre lavores e bordados, que sentia inúteis. A tristeza da mulher, nunca ganha aparência de fúria, mas contém em si elementos destrutivos que se viram contra si própria, Fechada no seu quarto, Constança praticamente não comia e recusava-se, mesmo a partir. Foi só já em Fevereiro, com as mascaradas dos primeiros dias de sol, que Constança acedeu a deixar Touro. O pai encontrou-a sentada na cama com o seu ar de mulher precocemente viúva e disse-lhe:
  • Perdeste a mão de esposa de teu primo Afonso. É preciso agora que te deixes levar pela mão de teu pai. Logo que este passo esteja dado tudo se poderá reparar Não te interessa agora a desobediência nem tão pouco os vigores do corpo. É preciso que o tempo aclare os feitos e que o teu coração inocente possa ser dignificado não pela violência, mas pela justiça da vingança.
Ao que Constança respondeu:
  • Nada sei dizer, meu Pai. Nada acho nas palavras que não encontro no peito e tudo o que encontro é uma dor, que ontem eu não sabia haver. Parto, porque já nada me prende ao lugar onde, longe das vistas, eu contava dia a dia o desejo das bodas. Parto, porque aprendi que não se doma a ferocidade com o que pode imitar a brandura.

Cortesia de inesdecastro3

Parece que no governo da fortuna são distintos os estados e indistintos os castigos. Partiu João Manuel para Penafiel e depois para a Corte de Aragão oferecer os seus préstimos a Jaime II, que era ainda seu cunhado. Neste entretanto, recebeu o rei português a proposta do castelhano de casar a filha de seu tio o infante D. Pedro, com o herdeiro de Portugal, bem como casar ele próprio, rei de Castela, com a infanta D. Maria, primeira filha de Afonso de Portugal e de Beatriz de Castela. O rei estava em Coimbra, nos paços de Santa Clara, ao pé da mãe, quando recebeu a notícia, onde se lhe propunha ainda uma dupla vigilância, se necessária, ao seu meio-irmão, Afonso Sanches, exilado em Castela e sempre irrequieto. Afonso Sanches, o preferido de seu pai, tinha-se instalado depois das tréguas de 1326, celebradas a instâncias da rainha-mãe, numa pequena e fortificada cidade da Extremadura castelhana: Albuquerque.

Albuquerque é, no seu tipo próprio, que não exclui o humano, um símile de vilas como Marvão, Castelo de Vide ou até Monforte ou Arronches. Albuquerque tem o seu castelo erguido como um gavião e a fronteira é um sulco imaginário, um limite espantoso e quase impensável, que divide mais dois destinos do que dois povos.

Cortesia de wikipedia

Despachou Afonso IV os mensageiros chegados e despachou-os com a notícia de que a proposta de seu primo o satisfazia inteiramente. Era seu desejo, dizia, ver a filha casada com o rei de Castela, ainda que para isso muito lhe custassem os compromissos assumidos por seu primo com a casa de João Manuel. Respondeu ó castelhano que tinha as necessárias dispensas eclesiásticas, e lembrou ainda que punha o máximo de interesse no casamento de sua parenta, D. Branca de Castela, com o infante herdeiro de Portugal, D. Pedro. Respondeu o português que o infante herdeiro, com sete anos, se havia de casar com D. Branca que completava oito anos no fim do ano.
É possível, que o empenho do rei castelhano em casar D. Branca o mais depressa possível, adviesse duma dúvida que ele pressentia existir entre si e o seu tio, entretanto falecido. Este seu tio, irmão de seu pai, Fernando IV, tinha sido seu tutor, para além de ter sido o valido mais próximo do seu próprio pai. A sua morte foi perfeitamente inesperada e teve a cobri-la alguns louros de martírio, pois morreu em combate no mais belo sítio onde se pode morrer: Granada.

Granada é muito mais bela que Veneza e a pertinaz Serra Nevada, com o seu pico magrebiano e as suas vertentes a contrastarem com um céu que parece já no mar, é muito mais fogosa e brilhante que esses arrebaldes bonitos, mas vulgares, de Veneza. Parece que o infante D. Pedro, pai de D. Branca, se afogou no rio Genil, um dos mais trágicos afluentes do Guadalquivir, já em pleno reino árabe, depois de ter cometido a proeza de conquistar nos contrafortes do maciço a fortaleza de Tiscar. Algo de trágico ensombrou esse acidente pois um outro infante, pai de João, «o Torto», morreu também nessa expedição, em que a maioria dos homens se afogaram nas veigas de Granada. Para além disso, D. Pedro deixava uma filha praticamente no berço, D. Branca, que parece ter, na inocência da sua idade, interiorizado para sempre um tal acidente». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.

Cortesia de PE América/JDACT