quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Leituras. Parte XXIIIa. Maria Antonieta Costa. O Segredo de Afonso III: «Ricos-homens, oficiais e demais fiéis vassalos que enchiam a alcova régia cochicharam, abanando a cabeça em sinal de desaprovação. O mordomo-mor, o alferes-mor e o chanceler, que poderiam ser considerados os três braços direitos do rei…»

Cortesia de wikipedia

Lisboa, Paço Real de Enxobregas, 16 de Fevereiro de 1279
«Aquele juramento da profissão de fé, que, segundo o abade alcobacense, era condição “sine qua non” para a salvação de D. Afonso, estava a ser difícil de engolir pelos consanguíneos do rei e por todos 16 seus íntimos que se encontravam no aposento. Ricos-homens, oficiais e demais fiéis vassalos que enchiam a alcova régia cochicharam, abanando a cabeça em sinal de desaprovação. O mordomo-mor, o alferes-mor e o chanceler, que poderiam ser considerados os três braços-direitos do rei, se o número máximo desses membros superiores permitidos a um ser humano não fosse apenas um, encontravam-se lívidos, lançando olhares ameaçadores a D. Mateus que traduziam bem a cólera que os possuía. Eram eles os homens mais poderosos do reino, logo abaixo do monarca, e era claro que sentiam aquele juramento roubado como um dos maiores vexames jamais infligidos ao seu soberano.
O eclesiástico, parecendo alheio a estas surdas manifestações de despeito, tentava agora conseguir a confissão. Deambulando em redor da cama, sempre seguido pelo acólito do turíbulo, pronunciava para o efeito, e repetidas vezes, uma citação da Epístola aos romanos do apóstolo Paulo:
  • «Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus O ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação».

Cortesia de wikipedia

Subitamente, D. Afonso estremeceu. Todas as atenções se centraram nele. De um lado e do outro do leito, do alto dos respectivos escanhos, os físicos debruçaram-se sobre o seu corpo doente. Escutaram, apalparam, trocaram impressões e gesticularam numa sucessão de ordens ao reposteiro-mor, que as transmitiu, de imediato, aos serviçais.
- Mais água fria e mais mantéis para fazer pachos. Sua Majestade arde em febre – ordenou um dos curandeiros.
O doente continuava a agitar-se. Levantou os braços e destapou-se. Depois, em gestos débeis, começou a tentar despir a primeira das camisas de linho.
- Ajudem-me a cobri-lo - gritou mestre Domingos das Antas para a criadagem, que, em bicos de pés, mal conseguia chegar aos flancos da cama.

João Peres de Aboim, o mordomo-mor, acercou-se, tentando com a sua alta estatura ajudar a fazer chegar um mantel ao físico. Tinha ganho o cargo não por linhagem, mas por serviço leal. Em tempos, fora também mordomo da rainha. Ponte de Lima e Évora estavam sob a sua tenência e era senhor de muitos herdamentos e préstamos, entre eles searas, almoinhas, matas, adegas, cavalariças, açougues, lagares, azenhas e muito mais. Ouvia-se na Corte que era um dos mais ricos senhores do reino. Acima de tudo, servia o rei sem ganância, com amizade, muita honra e sensatez.
Perante a iminência do desaparecimento do monarca, parecia verdadeiramente inseguro e desalentado. Sabia que pouco mais teria a fazer no Paço, pois que era inevitável que o infante prescindisse dos seus serviços. Portanto, morrendo o rei, morreria também uma considerável parte da sua vida, sem dúvida, a mais gloriosa. Do outro lado da cama, Gonçalo Garcia de Sousa não parava quieto um minuto. O alferes-mor era a antítese do mordomo, não só em temperamento, como em figura. Alguns jograis escarneciam-no nas suas cantigas. Pequeno mas muito activo, ora se chegava ao leito, numa atitude de quem ia trepar por ele, ora se afastava para, em bicos de pés, tentar ver o que se passava no topo.

Cortesia de wikipedia

Mais para o controlar do que para mostrar todo o apreço que lhe dedicava, o rei casara-o com a bastarda régia Leonor. Falso e de má índole, era inimigo declarado de Madragana, apenas porque morria de amores por ela e não suportava a inexplicável atenção que ela oferecia ao chanceler. Sofria de pavorosos ciúmes e ardia em fogo lento de cada vez que os seus olhos pousavam nela, cobrindo-se de suores sempre que contemplava a sua pele sedosa e trigueira. A visão daquela boca carnuda e carmesim, prometendo o sabor dos morangos silvestres, arrasava-o de paixão. Quando aspirava o inconfundível e penetrante perfume a almíscar da moura, que pulverizava o espaço aquando da sua passagem, o nobre tinha uma queda de tensão. Podia sentir a presença dela mesmo no jardim, pois a barregã conseguia impregnar com o seu cheiro voluptuoso milhares de metros cúbicos de ar. A sedução que aquela mulher exercia sobre o fidalgo originava-lhe, na maior parte das vezes, erecções imediatas e indisfarçáveis.

A sua consorte Leonor, uma mulher gorda e sem graça mas nada parva, notara desde cedo os efeitos que aquela exótica beleza morena, de olhos verdes cristalinos, despertava no esposo, o que determinara que nutrisse por ela um ódio e um desprezo camuflados. Marido e mulher, ambos eram terrivelmente afectados pela concubina. Ele, pela existência daquela criatura tão sensualmente magnífica Ela, pela inveja da sua presença elegante, harmoniosa e bela. Outro estremecimento. Toda a gente no quarto foi sacudida pelo novo e repentino esbracejar do rei, que, desta vez, intentava erguer-se do leito. Um murmúrio de vozes inundou o espaço.
Grande rebuliço animou os serviçais, que andaram de cá para lá cumprindo as ordens dos físicos, carregando pequenas caldeiras de água, ora quente ora fria, manipulando frascos de vidro contendo pós e líquidos farmacológicos». In Maria Antonieta Costa, O Segredo de Afonso III, Clube do Autor, 2011, ISBN 978-989-8452-28-3.

Cortesia do Clube do Autor/JDACT