domingo, 29 de abril de 2012

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «Esta espécie de visão espectral de Antero, da sua figura e da sua maneira de ser íntima, que o retrato de Columbano captou, não exemplifica a banal incompreensão dos que nos cercam e, por isso, mais dolorosa parece»


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A Passos de Pomba
«Não sei que contemporâneo de Antero, creio que o mesmo Eça, notou no autor dos “Sonetos” qualquer coisa de ‘antiquado’. Mais expeditivo, Oliveira Martins imaginou-o perfeitamente bem no século VI, na companhia de S. Bento, ou no século XIII, na de S. Francisco. Com uns pós de exotismo, o mesmo amigo e prefaciador dos “Sonetos” comparou-o a um monge budista. Em suma, o herói juvenil e turbulento da sua geração, o agitador memorável das ‘Conferências do Casino’, o utopista do socialismo nascente, era visto, mesmo pelos seus mais próximos, como uma espécie de personagem deslocado, em trânsito ou sem lugar apropriado, alguém de um outro tempo ou de um outro mundo.
Esta espécie de visão espectral de Antero, da sua figura e da sua maneira de ser íntima, que o retrato de Columbano captou, não exemplifica a banal incompreensão dos que nos cercam e, por isso, mais dolorosa parece. Esse ‘desajustamento’ irradiava do próprio Antero e, mais que reflexo da inquietude vital para a qual bem cedo não imaginou outro lugar de repouso que o da morte consoladora, correspondia ao que não podemos deixar de referir, como é, de tradição, de ‘inquietude metafísica’. Quer dizer, ao menos em termos de banal caracterologia espiritual, a um sentimento de radical perplexidade, estranheza, dúvida, não a este ou àquele aspecto do universo, da História ou da sociedade, mas da existência no seu todo. Em imagem que não é apenas da ordem da metáfora, mas pura transposição do obscurecimento e da absoluta perdição ontológica que é a sua, de náufrago num mar amargo, só o símile da Noite, por ele tão dolorosamente evocada, configura a exacta inscrição do seu destino.
O seu fascínio pela Noite não foi apenas herança romântica exacerbada, filha ambígua do titanismo e da sua decepção como em Musset, e muito menos a porta iluminada para um mundo mágico, o único real, aquém e além da Morte, como em Novalis, mas consubstanciação, ao mesmo tempo intelectual e erótica, com a Morte. Ele a exprimiu no mais negro e inexpugnável verso da nossa língua:
  • ‘Morte, irmã coeterna da minha alma’.
E é desta visão intolerável para o coração e impensável para o entendimento, que já por si anunciava ou pedia o gesto sem regresso com que a fez vida no horizonte da morte, e morte como enigma puro, que data a ruptura, não apenas da sua alma, mas da nossa antiga alma lusitana durante séculos acolhida ‘na mão de Deus’. Tudo o mais, utopia ardente de um mundo novo, sonho recolhido dos sonhos revolucionários desse século que ele chamou e sabia ‘ímpio’, são apenas consequências dessa ruptura que teve lugar no coração e no espírito de um só homem que tomou à letra, caso único entre nós, ‘a morte de Deus’ que era a da revelação da nossa vida sem mais horizonte que uma Noite intacta de onde a inaudível voz de Deus nos havia libertado.
Na verdade, essa Noite que o envolveu, a título pessoal e numa solidão cultural sem exemplo, cortando-o de uma tradição de que se sabia inseparável, se era insólita nos nossos céus tão límpidos, estava há muito incorporada no imaginário ocidental, não apenas como elemento decorativo ou estético (poesia das ruínas, metáfora da angústia universal e paradoxal fascínio da obscuridade) mas como presença indissociável do próprio mecanismo intelectual.
O momento barroco fora, como visão do mundo, um momento de miraculoso equilíbrio entre o Dia e a Noite. Na verdade, a perspectiva “diurna”, a de Deus, recebe já desta ‘sombra’ necessária para apreender o sentido justo da realidade uma claridade suspeita. Tão suspeita que o insuspeito Descartes decide cortar o nó górdio e devolver toda a luz a um Deus, ao mesmo tempo ‘sem razão’, porque só ele é luz e ilumina, e fonte de toda a razão.
É então, sem surpresas, que neste excesso de luz e razão que estrutura o mundo racional, o único digno desse nome, a Noite inicia o seu reino de contrapoder, a sua crítica de toda a Crítica que se arroga o privilégio de traçar os limites entre o que ‘tem sentido e o que não tem’. A Noite moderna não surge como simples efusão ou reivindicação do primado do instintivo, do sentimental ou do provocantemente irracional ou místico no campo da experiência humana, mas como “crítica do excesso de luz” que o novo saber veicula. Sob a forma de ‘iluminismo’ no sentido gnóstico ou do romantismo, numa nova forma de ‘docta ignorantia’, encontra a Noite as suas primeiras expressões modernas. E é menos Deus, a luz suprema, que é contestado que a pretensão “diurna” do moderno discurso racional. Não é por isso estranho que o símile da Noite, aquele absoluto às avessas, tal como Antero o invocará, cresça à medida que a exigência racional triunfa e coloca toda a vida prática sob a forma de técnica». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT