quinta-feira, 12 de abril de 2012

Crónica Esquecida d’el rei João II. Seomara Veiga Ferreira. Leituras. «João, irmão do fraco e bom rei Fernando, bastardo de Pedro, feito Rei para salvaguarda do Reino, teve antes do seu casamento com D. Filipa de Lencastre, que cimentou a aliança luso-inglesa, dois filhos bastardos. Um rapaz e uma rapariga, nascidos em Veiros, no Alentejo, de uma mocetona…»



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Désir ou o Canto do Cisne
«Eu pertenço a essa categoria de homens cujo nome o futuro nem sequer recorda, mas, por estranho que pareça, e por isso mesmo, descobri também que muito do que se escreve e diz, ao longo dos tempos, pode ser falso. Os cronistas mentem, os documentos mentem, os homens mentem. Todos nós mentimos. Creio que o Infante Pedro, se não mentiu, não disse a verdade toda, o Rei também guardou muitos segredos, a Rainha, o velho duque de Bragança, El Rei João, a Rainha D. Leonor, o senhor D. Manuel e todos os que se lhes seguiram. E eu também. Quando recordo o olhar pensativo do Rei, naquele fim de tarde, observando a paisagem, mal reparando na ansiedade do meu rosto pálido, eu que sabia ao que fora, eu o homem anónimo como qualquer dos outros cujo nome e cuja face a história nem sequer guardou, descubro que afinal nós os anónimos, os sem-ninguém, os sem-coisa-alguma-da-Terra, somos, às vezes, muito mais importantes do que as pessoas julgam. Para nosso mal. Chamo-me Ambrosius Roiz e sou Roiz há três gerações e, em certa medida, mudei a história do mundo, este nosso mundo que começo a reconstituir e a recordar desde esse dia de Maio de 1449, depois da derradeira noite de Coimbra, onde o filho segundo de João I, o Infante Pedro, dormiu, e mal, com a alma carregada e o coração opresso sem, talvez, ter tido sequer vontade de ingerir o precioso “lectoayro” para conseguir um estimulante sono de inocente como aconselhara no seu “Livro da Virtuosa Benfeitoria”.
Conheci bem Rui de Pina. Nunca cheguei a saber a data certa do seu nascimento, mas era homem feito, entroncado, de cabelos já estriados de branco e pescoço taurino quando João subiu ao trono, mais velho que o Rei e que eu porque nasci, com a diferença de quase dois meses, no mesmo ano que o terceiro filho de Afonso e de D. Isabel.


 Rui de Pina teve sempre, e manifestou-o naquilo que escreveu, uma marcada simpatia pelo avô do Rei. Eu também, mas quando pretendemos a verdade possível não nos compete juízos de valor. O mal existe em todo o lado e, quando se trata de uma intriga entre os grandes do Reino e em que está em jogo o poder, tudo pode acontecer e, para alguns, tudo é permitido. Achei sempre desnecessário o sangrento ajuste de contas de Alfarrobeira, não porque Pedro fosse totalmente inocente ou os Braganças totalmente culpados, mas porque os tempos mudam e, mais tarde ou mais cedo, no grande tabuleiro de xadrez que é o mundo, os peões deslocam-se, as torres assaltam-se, os cavaleiros sucumbem ou mudam de lugar, os Reis morrem, nascem, alteram o universo e nada resiste aos ventos da mudança. Vi um retrato do Infante no Paço da Alcáçova e sei que numa das salas do paço do duque Filipe de Borgonha, a sua irmã, a duquesa, guardava um pequeno retrato do irmão. Depois, pelas paredes dos paços, em Évora, em Coimbra, em Lisboa, em Beja, em Santarém ou no retiro de Odivelas da Infanta D. Filipa devem ter outros descansados nos cavaletes encomendados na Itália e em Bruges, reflectindo aquele rosto comprido, branco, o nariz grosso, os olhos claros, pensativos, servidos por um olhar aparentemente brando, a que Pina chamava ‘mole’, e que vi muitas vezes nos rostos dos homens da Inglaterra e da Irlanda, e aquela barba curta, ruiva, que lhe emoldurava o rosto e lhe concedia um certo aspecto de Imperador romano como nas efígies de ouro e prata das moedas que se guardam nalguns tesouros e eu vi nas mãos de Antão de Faria, de Diogo Ortiz e em casa de José Vizinho, que as colecciona, assim como em ofertas feitas pelos Papas, Reis e Imperadores a familiares e grandes dignitários.
João, irmão do fraco e bom Rei Fernando, bastardo de Pedro, feito Rei para salvaguarda do Reino, teve antes do seu casamento com D. Filipa de Lencastre, que cimentou a aliança luso-inglesa, dois filhos bastardos. Um rapaz e uma rapariga, nascidos em Veiros, no Alentejo, de uma mocetona que desonrou, embora essa mancebia fosse detestada pelo pai da donzela, chamado o ‘Barbadão’ que, por várias vezes, o ameaçou que, apesar de filho de Rei, lhe iria às costelas com um cacete, se não fosse coisa pior. O Mestre não abandonou os filhos e casou-os bem.
Ao mais velho, Afonso, deu-lhe a mão da filha do Condestável Nuno, D. Brites Pereira Alvim, e a Beatriz, essa, os interesses da política e a união com a Corte inglesa, que o pai contraíra, fizeram o destino encaminhá-la para bem longe. Casou com o conde de Arundel, numa primeira vez, porque contraiu depois de viúva outro matrimónio, tendo-a acompanhado a Inglaterra o irmão Afonso, conde de Barcelos e Senhor de Ourém, que passou a ser cunhado do Lorde do Tesouro, do governador do Castelo de Dover e do Inspector dos Cinco Portos.
Afonso recebeu o condado de Barcelos, após doação do Condestável, e o seu dote foi o princípio do poderio dos descendentes do bastardo de João que teve três filhos:
  • Afonso,
  • D. Isabel,
  • Fernando.
O Condestável, desejoso de tratar da sua alma, recolheu-se à sombra do convento e doou a seus netos os dois outros condados que lhe pertenciam: a Afonso, a judiaria de Lisboa com suas rendas, direitos e pertenças, os reguengos de Lisboa, Rio Maior, Alviela, condado de Ourém e de Porto de Mós, lugares, vilas, reguengos, paços, castelos, menagens, padroados das igrejas... Como Afonso era o neto primogénito ficou na posse de uma imensa fortuna. Estranha personagem este conde de Ourém, homem culto, educado, perfeito, que vestia majestosamente, sabia letras, filosofia, o latim e, tal como o Infante Henrique que levara grande parte da sua vida a imaginar o mundo a descobrir lá do seu rochedo sagrado, era uma das figuras mais importantes da Corte no tempo ainda de João, de Duarte e Afonso V.
Em 1422, o conde de Ourém fortificou a vila para suster um provável cerco ou ofensiva castelhana, tal como por ordem do avô o fizeram os seus tios Pedro e Henrique em Vila Real e Viseu, e seu pai, Afonso, em Bragança. Possuía uns belos paços no Rossio, nos Estaus, que tinham pertencido ao avô Nuno, embora tivesse preferido sempre, para viver, Ourém. Foi um ilustre diplomata, em Roma, em Basileia, e quando acompanhou a irmã de Afonso na embaixada ao Imperador Frederico da Alemanha, com quem casou a bela Infanta D. Leonor sua prima e mãe do futuro Maximiliano dos Romanos. Esteve na Corte da Borgonha, preparou também a expedição a Alcácer Ceguer… Em 1451, o jovem Rei Afonso deu-lhe o título de marquês de Valença». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT