domingo, 15 de abril de 2012

Cartas Portuguesas. Soror Mariana Alcoforado. «Não estavas tu tão cego como eu! E, então, porque deixaste que eu caísse no estado em que me encontro? Que querias fazer de todos os meus arroubos, que não podiam deixar de ser para ti bem importunos?»



Ilustração de José Ruy
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… uma paixão como nunca houve mais nobre, mais grave, nem mais ardente.

Quarta Carta

«Acaba de me dizer o teu lugar-tenente que uma tempestade te obrigou a arribar ao reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar, e esta apreensão de tal modo ocupou o meu espírito que não pensei mais nos meus próprios males. Estarás convencido de que o teu lugar-tenente sente mais do que eu tudo o que te acontece? Então porque está ele mais bem informado e, afinai, porque me não escreveste?
Bem desgraçada sou se, desde que partiste, não encontraste nenhuma ocasião para o fazer, e muito mais o sou se a tiveste e não me escreveste. A tua injustiça e a tua ingratidão não têm limites! Mas eu ficaria desesperada se elas atraíssem sobre ti alguma desgraça, e prefiro que fiquem impunes a sentir-me vingada.
Resisto a todas as evidências que me deviam persuadir de que já não me amas e sinto-me muito mais disposta a abandonar-me cegamente a minha paixão do que aos motivos que me dás para me queixar da tua falta de atenção.
Quantas inquietações me terias poupado se a tua maneira de proceder tivesse sido tão desleixada nos primeiros dias em que te vi, como me tem parecido que é de algum tempo a esta parte! Mas quem não se deixaria enganar, como eu me deixei, por tantos desvelos, e quem os não teria por sinceros? Quanto custa resolver-nos a suspeitar por muito tempo da boa-fé daqueles que amamos!
Bem vejo que a mais pequena desculpa te basta, e nem sequer tens a preocupação de ma dar. No entanto, o amor que tenho por ti serve-te com tanta fidelidade que não posso consentir em te considerar culpado senão para gozar do inefável prazer de eu própria te justificar.
Consumiste-me com a tua assiduidade!
Inflamaste-me com os teus transportes!
Encantaste-me com as tuas complacências!
Tranquilizaste-me com as tuas juras!
A minha violenta inclinação me seduziu, e o que se seguiu a estes inícios tão agradáveis e tão felizes são apenas lágrimas, suspiros e uma morte atroz, sem que a isso possa dar remédio algum.
É verdade que tive prazeres bastante surpreendentes amando-te: mas custam-me agora terríveis dores! São sempre extremas as emoções que de ti me vêm!

Se tivesse obstinadamente resistido ao teu amor, se te tivesse dado algum motivo de preocupação e de ciúme para te inflamar ainda mais, se tivesses notado na minha conduta algum artifício; enfim, se tivesse querido opor a minha razão a inclinação natural que tenho por ti e que te apressaste a fazer-me notar (embora os meus esforços tivessem certamente sido inúteis), poderias punir-me com severidade e usar do teu poder, Mas tu pareceste-me amável, antes mesmo de me teres confessado o teu amor. Testemunhaste-me uma grande paixão, e fiquei deslumbrada e abandonei-me a amar-te perdidamente.
Não estavas tu tão cego como eu! E, então, porque deixaste que eu caísse no estado em que me encontro? Que querias fazer de todos os meus arroubos, que não podiam deixar de ser para ti bem importunos?» In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.

continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT