quinta-feira, 5 de abril de 2012

Leituras. Bochimanes (!KHU) de Angola. Viegas Guerreiro. «Nesta terra há homens baços, que não comem senão lobos marinhos e baleias, e carne de gazelas, e raízes de ervas; e andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas naturas. E as suas armas são uns cornos tostados, metidos em umas varas de zambujo; e têm muitos cães, como os de Portugal, e assim mesmo ladram…»



Pinturas rupestre de Bochimanes
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Primeiros contactos com Bochimanes
«Havia mais de três meses que as naus de Vasco daGama, deixada Santiago de Cabo Verde, se tinham engolfado no grande mar-oceano, a caminho do cabo da Boa Esperança. Consumidos pelos trabalhos da viagem, com pouca água e escassos alimentos, era com ansiedade que os marinheiros portugueses buscavam terra. E esta apareceu-lhes, finalmente, às 9 horas da manhã do dia 4 de Novembro de 1497. Não tinha a costa lugar para desembarque; de novo na volta do mar, só a 7 acharam baía larga e segura e com bom surgidouro. Deram-lhe o nome de angra de Santa Helena. Aí se tomou a altura do Sol e a armada se abasteceu de água e de lenha e de quanto refresco na terra havia; e aí acharam uma gente singular que o roteirista da viagem descreve nos seguintes termos:
  • ‘Nesta terra há homens baços, que não comem senão lobos marinhos e baleias, e carne de gazelas, e raízes de ervas; e andam cobertos com peles e trazem umas bainhas em suas naturas. E as suas armas são uns cornos tostados, metidos em umas varas de zambujo; e têm muitos cães, como os de Portugal, e assim mesmo ladram. As aves desta terra são assim mesmo como as de Portugal: corvos marinhos, gaivotas, rolas, cotovias e outras muitas aves... Ao outro dia, depois de termos pousado, que foi à quinta-feira [Novembro, 9], saímos em terra com o capitão-mor e tomámos um homem daqueles, o qual era pequeno de corpo e se parecia com Sancho Mexia; e andava apanhando mel na charneca, porque as abelhas naquela terra o fazem ao pé das moitas, e levámo-lo à nau do capitão-mor, o qual [o] pôs consigo à mesa e de tudo o que nós comíamos, comia ele.E ao outro dia o capitão-mor o vestiu muito bem e o mandou pôr em terra... E ao domingo [Novembro, l2] vieram obra de 40 ou 50 deles, e nós, depois que jantámos, saímos em terra e, com ceitis que levávamos, resgatámos conchas que eles traziam nas orelhas, que pareciam prateadas, e rabos de raposa, que traziam metidos em uns paus, com que abanavam o rosto. Onde eu resgatei uma bainha, que um deles trazia em sua natura, por um ceitil; pelo qual nos parecia que eles prezavam o cobre, porque eles mesmos traziam umas continhas dele nas orelhas...’.
Fernão Lopes de Castanheda, no livro I da sua “História da Descobrimento e Conquista da Índia”, publicado em 1551, diz destes mesmos homens que eram ‘feios de rosto’ e ‘quando falavam parecia que saluçavam’. E Damião de Góis, um pouco mais tarde (1566-7), que tinham ‘o cabelo revolto, como os de Guiné’. Também João de Barros e Jerónimo Osório se lhes referem, sem que achemos neles novidade de pormenor.
Um povo de cor baça, corpo pequeno, de cabelo revolto, falando como por ‘saluços’ e vivendo da captação de produtos do mar, como da caça e apanha de raízes de ervas e mel silvestre. Vestia peles, trazia suas naturas em bainhas, usava nas orelhas conchas e continhas de cobre e abanava o rosto com rabos de raposa.
Seres semelhantes no corpo, vestuário e língua, mas vivendo do pastoreio de vacas e carneiros, foram os que encontraram nove dias depois, numa outra angra, a de S. Brás, para além do Cabo e junto dele.
Gentes estranhas, uma e outra, e nunca vistas; e a notícia que delas deram os cronistas portugueses foi a primeira que o Ocidente conheceu. Só 155 anos mais tarde, em 1652, os Holandeses acharam, no Cabo, a segunda destas populações. Lançava, então, Jan van Riebeeck, por mandado da Companhia Holandesa das Índias Orientais, as bases de um entreposto destinado a reabastecer os navios enviados às Índias Orientais. Os colonos recém-chegados deram a estes homens o nome de “Hotentotes”.
Em 1654., um dos oficiais do governador Riebeeck encontrava, a 50 milhas da baía da Mesa, para o sertão, ‘certos indígenas de pequena estatura, muito magros, inteiramente selvagens, “não possuindo cubatas nem gado” e vestidos, no entanto, como os Hotentotes e falando a mesma língua’. Em Agosto de 1685 o comandante Van der Stel, em viagem de Capetown para a Namaqualândia, na costa ocidental, tomava contacto, para além do rio Berg, com nativos que se apelidavam de Souqua e ‘viviam de mel e caça... de tartarugas, lagartas, gafanhotos, e dos bolbos de plantas selvagens’. E J. Barrow, que em 1796-7 viajou por esta mesma região do Oeste, relata que homens como estes eram ainda numerosos nos limites das terras ocupadas pelos fazendeiros ‘boers’, ao longo da cordilheira de Khamiesberg». In Viegas Guerreiro, Bochimanes (!KHU) de Angola, Estudo Etnográfico, Tipografia Silvas, Lisboa, 1968.

Cortesia Estudos Etnográficos/JDACT