quarta-feira, 25 de abril de 2012

Cultura. Civilização. António José Saraiva. «Entre as actividades lúdicas conta-se o luxo, que é, ao mesmo tempo uma exibição e um concurso. Em certas épocas e sociedades, as pessoas parecem funcionar como se quisessem dar espectáculo umas às outras»


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O ‘homo ludens’
«O desporto teve sempre uma grande importância na vida colectiva das cidades e mobilizou multidões e rios de dinheiro. Há desportos que são, na realidade, espectáculos para multidões em que os figurantes estão destinados a morrer às mãos uns dos outros, como os combates de gladiadores. Na Grécia antiga, os Jogos Olímpicos tinham um papel político importante no conjunto dos estados concorrentes. Mas esses jogos eram concursos individuais. Modernamente, o desporto sofreu uma mutação: apareceram os jogos entre equipas, como o futebol, que acrescentou ao espectáculo desportivo uma qualidade teatral: “o suspense”. Neste tipo de desporto, os agentes em competição são grupos que têm de responder colectivamente a situações imprevistas, e o desfecho é incerto até ao fim.
Entre as actividades lúdicas conta-se o luxo, que é, ao mesmo tempo uma exibição e um concurso. Em certas épocas e sociedades, as pessoas parecem funcionar como se quisessem dar espectáculo umas às outras. Nas mais antigas civilizações conhecidas, as jóias de metais ou pedras preciosas têm um papel importante.
Desse luxo faz parte a habitação, a moradia, o palacete, o palácio, o templo. A habitação estritamente funcional construída em série e obediente a critérios de rendimento, isto é, de juros do capital investido, é uma invenção recente.

A retórica
O luxo manifesta-se também na comunicação. A linguagem que só pretende transportar uma comunicação (uma mensagem ou um recado) dispensa o luxo. Na linguagem, são luxo as chamadas figuras de retórica, redundâncias ou desvios em relação ao discurso funcional, como as hipérboles (exageros de expressão), metáforas (trocas de significado), repetições, comparações, a linguagem mímica e outras. A arte literária, nomeadamente nas épocas chamadas barrocas, é principalmente feita com estes luxos. Mas sem eles a comunicação tende a reduzir-se a símbolos puros como na matemática.
Entre as artes literárias, deve incluir-se a critica literária, que alguns modernos pretendem transformar em ‘ciência’. Na realidade, a crítica literária ou é erudição estéril ou é citação. O grande crítico é um intérprete da obra criticada, ao nível do autor desta, e a crítica resulta da experiência da leitura, experiência subjectiva e pessoal». In Cultura, António José Saraiva, Difusão Cultural, 1993, ISBN 709-972-154-7.

Cortesia de Difusão Cultural/JDACT