quinta-feira, 13 de setembro de 2012

‘Defensa Femenina’ e ‘Invectiva da Fermosura’. Literatura Panfletária e Satírica. Ana Hatherly. «Assim, enquanto na ‘Defensa Femenina’ nos é proposta uma etimologia em que se destaca a sua dimensão alegórica, na ‘Invectiva da Fermosura’ a questão é sobretudo explorada para fins de sátira, de crítica, ao declarar-se que mana está ligada a mona, palavra que significa ‘macaca’»


Cortesia de quimera


Defensa Femenina em abono da Manisse das Senhoras Mulheres contra a murmuração dos homens.
Invectiva da fermosura contra o indecoroso abuzo da manice em resposta à defensa feminina feita para manifesta ainda que indigna protecção do mesmo dilirio.  In Quimera.


«Os textos atribuídos ao visconde de Asseca e a frei João Manuel atraíram a nossa atenção por conterem elementos que julgamos de interesse para uma investigação das relações entre a imaginação literária e a convivência no nosso país durante o período barroco, em particular no que diz respeito às críticas ao comportamento da mulher.
O texto atribuído ao visconde de Asseca intitula-se Defensa Femenina / em abono da Manisse / das Senhoras Mulheres / contra a murmuração dos homëns; o atribuído a fr. João Manuel, Invectiva da fermosura contra o indeco /roso abuzo da manice em resposta à defença / femenina feita para manifesta ainda que indigna / protecçaõ do mesmo dilirio. Do manuscrito do visconde de Asseca encontrámos duas versões: a acima referida, numa Miscelânea de Prosas compilada por Antonio Correya Vianna, com data de 1782, actualmente na Biblioteca da Ajuda, e uma outra, sem data, incompleta e com algumas diferenças textuais, incluída numa Miscelânea do século XVIII da Colecção Pombalina, existente na Biblioteca Nacional em Lisboa. A versão por nós transcrita é a que se encontra na compilação de Antonio Correya Vianna, sendo as mais significativas variantes da outra assinaladas em notas ao longo do traslado.
Do texto de fr. João Manuel também conhecemos dois manuscritos: o que transcrevemos, que consta da mesma Miscelânea da Colecção Pombalina da Biblioteca Nacional, e o que se guarda na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora. Nenhum tem data. As diferenças entre estas duas versões são mínimas e pouco significativas. Por isso não as assinalamos.
Na transcrição das versões seleccionadas reproduzimos a ortografia original, respeitando a acentuação e a pontuação peculiares, sem corrigir lapsos. Porém, para facilitar a leitura, desenvolvemos as abreviaturas e introduzimos no texto de fr. João Manuel algumas palavras (entre parênteses rectos) que no original tinham sido obliteradas por um derrame de tinta e que o cotejo com a versão de Évora nos permitiu conhecer.
A identificação dos autores, nos códices da Biblioteca Nacional, é feita pelos respectivos copistas no alto da primeira folha, sumariamente dizendo, num: Visconde de Aseca; noutro: Fr. João M.el .No códice da Biblioteca da Ajuda o copista acrescentou ao título os seguintes dizeres: Discurso / jocosserio / Escrito / Pello Exmo Visconde de Asseca. [...]

Debruçando-nos agora sobre o conteúdo dos textos, verificamos que ambos giram à volta da questão da Manice, palavra que designa uma prática que os dois autores se empenham, respectivamente, em defender (visconde de Asseca) e em condenar (fr. João Manuel).
No discurso do visconde de Asseca, em que a Manice é justificada em nome do ‘amor de sÿ mesmo’ e em virtude duma tendência segundo a qual ‘uma Formozura se inclina a outra Formozura’, é de importância considerável a declaração da etimologia da palavra, grafada manisse pelo copista do visconde de Asseca e manice pelo de fr. João Manuel.
Na ‘Defensa Femenina’ pode ler-se:
  • Para darmos principio a esta Manisse, he necessario examinar a derivassaõ, ou principio que tem este docissimo nome de Mana. Os Autores mais graves que tractáram de ethimologias, dizem que Mana, se deriva de Maná; e a razaõ he, porque o Maná sabia a tudo aquilo que a vontade podia apetecer; e que nas Manas, se acha tambem esta propriedade, porque tem differentes sabores na diversidade dos üzos: derigidos igoalmente pella ley do gosto...
Na ‘Invectiva da Fermosura’, depois de ter sido contestado que a Formosura seja a origem da Manice, declara-se quanto à etimologia da palavra:
  • Diz o nosso Author que segundo a melhor etimologia, este nome mana se diriva de Manna: naõ o duvido, mas he do manná galenico com que se emfastia o gosto e naõ daquelle manná em que o desejo encontra na variedade o desfastio. He hüa mana hum rescipe de Cupido com que a fermosura se purga do aggrado e bizarria. Senaõ vejaõ as manas a propria etimologia do seu nome que a coriosidade descobrio nos authores de melhor nota, e incognitos ao seu defensor. Manná (se avemos de seguir os authores castelhanos) derivace de mano, que em portugues significa a maõ a qual como instromento da manice, deu a etimologia ao nome...
A seguir, o autor afirma que ‘este nome manná he Paranomazia de mona’, acabando por estabelecer um paralelo jocoso entre ‘manas’ e ‘monas’, e ‘manices’ e ‘monices’.
Assim, enquanto na ‘Defensa Femenina’ nos é proposta uma etimologia em que se destaca a sua dimensão culta, alegórica, séria, na ‘Invectiva da Fermosura’ a questão é sobretudo explorada para fins de sátira, de crítica, ao declarar-se que mana está ligada a mona, palavra que significa ‘macaca’.
Da comparação dos dois textos em breve se torna evidente que a sua maior virtude residirá, porventura, no seu acentuado contraste.
[...]
Destes dois textos pode dizer-se que ambos seguem as normas do debate académico barroco, ambos são elegantes, eruditos e discretos, só que o do visconde de Asseca é um discurso sério e o de fr. Manuel é um discurso joco-sério [...]. In Ana Hatherly, Defesa e Condenação da Manice, Quimera, Lisboa, 1989, Fundação Calouste Gulbenkian.

Cortesia de FCG/JDACT