segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Inês de Castro. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. «Conhecia a Lagoa de Óbidos palmo a palmo e tinha percorrido os areais do Litoral, pelos dias ventosos de Janeiro, desde a Atouguia até à foz do Sizandro. O seu coração pertencia a esses lugares calados que tinham entrado na sua vida e eram nela apertadas sementes»



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«Avistaram Coimbra nos últimos dias de Setembro, quando o céu ele próprio parece ao entardecer uma vinha acabada de vindimar. E uma nudez que ainda não esfriou e onde há, todavia, um mosto quente e pegajoso. O sol aquece as tinas que estão com as uvas nos campos e tisna a pele dos homens ou dos peregrinos. O grupo tinha engrossado com a chegada a Coimbra e desde Vila do Conde que outros peregrinos se tinham juntado ao grupo para fazerem em conjunto as duas ou três últimas etapas. A presença da rainha já era conhecida e o filho do rei Dinis, o conde de Barcelos, que deixaria um espólio poético importante, mandou gente de sua casa. Vivia no solar de Lalim, ao pé de Lamego, sob o céu da igreja de Almacave, e aí havia de compor o célebre “Livro de Linhagens” e compilar a crónica medieval portuguesa mais antiga, a ‘Crónica Geral de Espanha’, de 1334, arredado que estava de todas as lutas pelo poder. Há na arte, e sobretudo na escrita, uma força de austeridade que faz que se descubra uma disciplina e se imponha uma orientação que tem alguma coisa de voto de silêncio. O místico aproxima-se do poeta, porque ambos vivem não daquilo que os rodeia, mas daquilo que imaginam. A compreensão e a conformidade de entendimento entre Isabel de Aragão e o conde de Barcelos, bastardo de seu marido, era imediata e não exigia de parte a parte qualquer esforço. O conde estava casado em segundas núpcias com uma senhora duma das mais poderosas famílias de Aragão, Maria Ximenes, e o catalão falava-se mais no seu paço de Lamego do que na corte de Lisboa. Foram esperá-la a Vila do Conde e acompanharam-na a Coimbra onde a esperava também o seu filho, rei de Portugal.
Vinha falar-lhe do infante e do casamento deste, por procuração, com Constança Manuel, que se previa para os primeiros meses do ano de 1336.
O ano de 1336 entrou carregado de nuvens e forte de águas. Algumas pontes tinham ruído, o que era sinal de isolamento, e transitava-se com dificuldade no interior. Tempestades de vento tinham feito derrocadas de árvores seculares arrancadas no meio dos campos e nos caminhos. Carvalhos gigantescos tinham sido abatidos. Os camponeses resguardavam-se em casa ateando braseiros de vide. Cortavam vime, modelavam barro, abriam pipos, limpavam lagares, mas praticamente não se afastavam de casa onde viviam paredes-meias com os animais. O rei estava em Coimbra com D. Brites, no paço de Santa Clara, onde alojaram também Branca, que devia ser entregue ao rei de Castela logo que este deixasse vir para Portugal Constança Manuel, que continuava idilicamente retida na cidade de Touro. Foi aí, no paço de Santa-Clara a Velha, que o infante Pedro, chegado da Atouguia, interpelou o pai, dizendo-lhe, a dois dias de partirem para Évora onde se deveriam realizar as festas de casamento entre Constança e Pedro, o seguinte:

 - Meu pai, ireis desculpar, mas é sem ânimo que encaro este casamento. O coração não me é conforme neste jeito e para ele vos peço outra compreensão e outro juízo, que deve ser de pai e não de rei.

Pedro era agora um corpo teso, membrudo, onde despontavam todos os sinais duma virilidade animal. Estava corpulento e tinha mãos pesadas, revestidas duma crosta dura e amarelada, calosa, que resultava do trato diário que ele tinha com as pedras, as silvas e os javalis. Calçava borzeguins de atacadores e o cabelo caía-lhe já sobre os ombros. O pai respondeu-lhe:

 - O rei é pai por afeição, mas é senhor por obrigação. Estimam-se os homens como filhos, mas é também por isso que se governam como vassalos. Irás dar a tua mão a Constança Manuel e saberás a seu tempo quanto foi acertada esta escolha. É como pai que te caso, mas é como rei que o maior cuidado tenho no que importa à conservação do reino.

Pedro olhava para os campos. Estava sentado na borda duma arca de madeira de castanho e o seu coração estava limpo de paixões. Conhecia a Lagoa de Óbidos palmo a palmo e tinha percorrido os areais do Litoral, pelos dias ventosos de Janeiro, desde a Atouguia até à foz do Sizandro. O seu coração pertencia a esses lugares calados que tinham entrado na sua vida e eram nela apertadas sementes. A experiência com Branca de Castela tinha-o  aborrecido até às raízes e a mulher era para ele, ao nível da consciência, um ser decididamente encoberto a que só, muito fragmentariamente, no domínio dos seus sonhos, ele tinha acesso. O pai disse-lhe ainda:

 - Não respondes, Pedro?

Pedro retirou então os olhos dos campos e fechou-os. Abriu-os depois e fitou a estatura avantajada do pai. Disse:

 - A liberdade que há naqueles montados é em tudo superior ao ordenamento que os próprios homens põem nas coisas. Vejo na solidão da natureza um respeito que me surpreende e prezo por isso a sua convivência.

In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

Cortesia de PE América/JDACT