quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Memorial do Convento. José Saramago. «Deviam de ser de fora da corte, se fossem moradores nela dava-se pela falta da mulher e começavam a murmurar, terá sido algum pai que determinou matar a filha por causa de desonra e a mandou trazer…»


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«Tornou a conversa ao ponto primeiro, e foi contado o caso do dourador que deu uma facada numa viúva com quem queria casar, e não queria ela, que por castigo de não coroar o desejo do homem ficou morta, e ele foi-se meter no convento da Trindade, e também aquela desventurada mulher que tendo repreendido o marido de descaminhos em que andava, lhe passou ele uma espada de parte a parte, e mais o que aconteceu ao clérigo que por história de amores levou três formosas cutiladas, tudo em tempo de quaresma, que é sazão de sangue ardido e humor retraído, como se tem averiguado. Mas Agosto também não é bom, como ainda o ano passado se viu, quando aí apareceu uma mulher cortada em catorze ou quinze pedaços, nunca se chegou a saber a conta, o que se percebia é que tinha sido açoitada com muita crueldade nas partes fracas, como traseiras e barriga das pernas, cortadas fora, separadas dos ossos, os pedaços foram deixados na Cotovia, metade postos nas obras do conde de Tarouca, e os outros abaixo nos Cardais, mas tão manifes tos que facilmente foram encontrados, nem os enterraram, nem os deitaram ao mar, parecia que de propósito os deixavam à vista, para que fosse geral o horror.
Tomou então a palavra João Elvas, que declarou, foi grande chacina, e deve ter sido feita em vida da infeliz, porque teria sido rigor demasiado tratar assim um cadáver, e porquê, quando o que ali se via era o retalhado das partes sensíveis e menos mortais, só alguém de coração mil vezes danado e perdido pode ter praticado tal crime, nunca na guerra viste uma coisa assim, Sete-Sóis, mesmo não sabendo eu o que na guerra viste, e o que começara a contar o caso pegou nesta vírgula e continuou. Depois foram aparecendo as partes que faltavam, ao outro dia achou-se na Junqueira a cabeça e uma mão, e um pé à Boavista, e por mão, pé e cabeça se viu ser pessoa mimosa e bem-criada, mostrava o rosto ter de idade não mais que dezoito, vinte anos, e no saco onde apareceu a cabeça vinham as tripas e mais partes interiores, e os seios, cortados como laranjas, e com eles uma criança que mostrava três ou quatro meses, estrangulada com um cordão de seda, em Lisboa tem-se visto muito, nunca um caso assim.
Tornou João Elvas, acrescentando o que do sucesso sabia, El-rei mandou pôr cartéis com promessa de que se dariam mil cruzados a quem descobrisse os culpados, mas já lá vai quase um ano e nunca se descobriram, pudera, que logo toda a gente viu que deviam ser pessoas com quem se não havia de entender, que os tais homicidas não eram sapateiros nem alfaiates, que estes só nas bolsas fazem cortes, e os da tal mulher foram feitos com tal arte e ciência, sem se errar nenhuma junta de tantas partes do corpo que se lhe cortaram, quase osso por osso, que os cirurgiões chamados à vistoria disseram que aquilo fora feito por pessoa peritíssima na arte anatómica, só não confessaram que nem eles sabiam tanto. Por trás do muro do convento ouviam-se ladainhar as freiras, mal sabem elas do que se livram, parir um filho e tão violentamente pagar por ele, então Baltasar perguntou, E não veio a saber-se mais, nem quem fosse a mulher. Nem dela nem dos homicidas houve notícia, puseram-lhe a cabeça na porta da Misericórdia para ver se alguém a conhecia, foi o mesmo que nada, e um dos que ainda não tinham falado, de barbas mais brancas do que negras, disse.
Deviam de ser de fora da corte, se fossem moradores nela dava-se pela falta da mulher e começavam a murmurar, terá sido algum pai que determinou matar a filha por causa de desonra e a mandou trazer, espedaçada, em cima de mula ou escondida a carniça numa liteira, para a espalhar na cidade, se calhar, lá onde mora, enterrou um porco a fingir que era a assassinada, e disse que a sua pobre filha tinha morrido de bexigas, ou de humores corruptos, para não ter de abrir a mortalha, ele há gente capaz de tudo, até do que está por fazer». 
In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT