quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Leituras. Mariazinha em África. Fernanda de Castro. «’Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite’, David Mourão Ferreira»


Ilustração de Ofélia Marques
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«Mariazinha, porém, estava fula:
- Sabichão das dúzias! Se não me fosse hoje embora, dava-te um puxão de orelhas que até vias as estrelas!
- E eu não te deixava um pêlo na cabeça!
Felizmente, nesse instante, Manuela apareceu a correr, dizendo que o almoço ia para a mesa. Imediatamente, todos se levantaram. Estavam com fome e a cozinheira, para despedida, prometera-lhes uma grande travessa de arroz doce...
O pai destes meninos era oficial de Marinha e havia perto de três anos que estava em África, na Guiné em comissão de serviço. Em todas as cartas mandava dizer que tinha muitas saudades da mulher e dos filhos e, um, dia, acabada quase a época das chuvas, pediu à mulher, que fosse passar uns meses com ele e que levasse Mariazinha, que era a mais velha, e Afonsinho, que era o mais novo, e não podia ainda separar-se da mãe.
Contentíssima, a mãe começou logo a tratar de tudo para poder embarcar o mais depressa possível. Mariazinha não cabia na pele de contente. Gostava de viajar, de ver coisas novas, caras novas, e, como ,era valente e decidida, não a a assustava aquela grande viagem num barco que lhe parecia enorme, capaz de afrontar todos os perigos, mas que, na realidade, deixava muito a desejar.
Na última semana, não tivera mãos a medir. A mãe comprara-lhe vestidos brancos por causa do calor, sapatos de sola de borracha para não escorregar a bordo, uma espécie de capacete, forrado de cortiça, para, evitar o perigo das insolações. Já fizera a sua mala e já acondicionara, num caixote, a caixa de tintas, a linha e os anzóis, a raquette, a carabina e os vinte ou trinta livros de que nunca se separava.
Na véspera, à noite, depois dum dia agitado, a mãe beijara com muitas lágrimas os filhos que ficavam, e estes, muito tristes, haviam chorado, também, e só altas horas da noite tinham sossegado.
Agora, faltavam poucas horas para a partida. O vapor saía às quatro em ponto. Mariazinha, embora o não confessasse, tinha um nó na garganta. Afonsinho andava rabugento, a choramingar pelos cantos. Mas, para despedida, a mãe encomendara um almoço com muitas coisas boas, prometera mandar presentes aos que ficavam, de modo que, ao sair de casa, só ela tinha ainda os olhos tristes, marejados de lágrimas...
Como viviam numa quinta, na ‘Outra Banda’, tiveram de atravessar o Tejo.
Estava um dia lindo, ,sem vento e sem nuvens. Quando chegaram ao cais, já lá estavam os tios, os primos e os amigos. O vapor, cinzento com o cano encarnado, estava a deitar fumo. Os marinheiros andavam dum lado para o outro no convés e os carregadores do cais levavam as malas dos passageiros para as cabines.
Ouviu-se então um apito muito agudo, que era o primeiro sinal de partida. Mariazinha e Afonsinho andavam de mão em mão. A mãe, ao beijar os filhos que ficavam, não podia evitar que as lágrimas lhe corressem em fio pela cara. E todos recomendavam a Mariazinha:
 - Cautela! Não te debruces! Toma conta do teu irmão! Passados momentos, ouviu-se o segundo sinal. No cais, muita gente chorava, acenando com lenços brancos.
 - Senhores passageiros, para bordo! - gritava um criado de casaco branco, agitando uma sineta. Então, levados na onda dos passageiros, separados bruscamente do resto da família, Mariazinha, a mãe e o irmão encontraram-se, sem saber como, no convés do barco, que daí a instantes ia partir e onde teriam de viver longos dias, entre o céu e o mar, à mercê das ondas...
Sobre o rio, balouçavam-se gaivotas. O barco ia a caminho da barra, No cais, os lenços pareciam borboletas brancas». In Fernanda de Castro, Mariazinha em África, literatura infantil, Edições Ática, Lisboa, 1959.

Cortesia de E. Ática/JDACT