sábado, 27 de outubro de 2012

A Comenta Secreta. Que segredos guardam Afonso Henriques e o mestre templário Gualdim Pais? Maria João Pardal e Ezequiel Marinho. «… crianças descalças que corriam de um lado para o outro soltando gargalhadas, belas damas que exibiam os seus dotes femininos, que apesar de cobertos atraíam os olhares dos homens que passavam»

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O Reencontro
«Dois anos depois, corria o ano da graça de 1159 e Gualdim Pais era o Mestre da Ordem do Templo no reino de Portugal. Nesse Domingo de Outono, tinha terminado a missa na Igreja de Santa Maria, nas encostas da serra e o mestre que tutelava Cintra (Sintra, já fazia parte dos mapas de Ptolomeu e era referenciada como ‘Montanha da Lua’; ‘Sin’ é um termo mesopotâmeo, que significa Lua) orava em silêncio, quando Renato Moniz, seu escudeiro, o interrompeu:
 - Senhor, perdoai-me... Curvou-se respeitosamente e continuou… Mas chegou um emissário do rei. Aguarda lá fora e deseja falar-vos.
Gualdim, quase imóvel, sem mexer a cabeça, ergueu a mão em silêncio, num gesto de recolhimento. Por hora, não queria ser interrompido. - Digo-lhe que aguarde Mestre? - Perguntou Renato em voz baixa.
Gualdim moveu novamente a mão, continuando as suas preces em silêncio. Renato curvou-se perante o altar, fez o sinal da cruz e saiu. Dirigiu-se ao emissário que se encontrava junto ao adro e disse-lhe:
 - Perdoai-me senhor, o Mestre pede que o espereis aqui fora. O misterioso homem assentiu e Renato retirou-se silenciosamente. Já tinham praticamente saído todas as pessoas da igreja. Apenas alguns grupos conversavam tranquilamente no exterior, entre vendedores ambulantes, crianças descalças que corriam de um lado para o outro soltando gargalhadas, belas damas que exibiam os seus dotes femininos, que apesar de cobertos atraíam os olhares dos homens que passavam. Todo o movimento caracterizava o ambiente daquela manhã solarenga de domingo.
O jovem escudeiro colocou-se novamente junto da montada do seu senhor e continuou a conversar com Abel. Os dois amigos tinham travado conhecimento doze anos antes, em Lixbuna (Olisipo; Felicitas Júlia; Lissabona foram os nomes atribuídos à cidade de Lisboa ao longo dos tempos) e sempre que se reencontravam, partilhavam a mesma história, recordando o curto, mas fraterno, passado que os unia:
  • ‘Depois da conquista de Santarém, El-Rei Afonso Henriques dirigiu-se para Lixbuna, em Abril de 1147, e iniciou um longo cerco à cidade. Não a tratou como a Santarém, a ferro e fogo, teve antes o cuidado de preservar bens e pessoas. Este precioso posto comercial tinha de ser mantido com as suas características. Renato, juntamente com seu pai, acompanhava o rei na conquista. Contava apenas seis anos, apesar de aparentar mais idade do que na realidade tinha, era ainda uma criança e a seu conselho, tinha posto de parte o alaúde e pegado na espada. Era um jovem alto e franzino na sua constituição, sensível e meigo, com uns enormes olhos castanhos amendoados, que não escondiam o que de mais nobre lhe ia na alma. Revelava já um espírito forte e uma coragem rara, que o tornavam capaz de se bater pelos valores em que acreditava. Sua Majestade El-Rei Afonso Henriques estabeleceu o seu posto de comando no Monte da Graça. Eram de tal forma violentas as incursões e tamanho o número de mortos, que mandou edificar duas zonas para cemitérios, nas quais mandou erigir duas igrejas: dedicadas, uma a S. Vicente e outra aos Mártires. Pediu apoio a vários cruzados que estavam estacionados no Porto e se dirigiam para a Terra Santa. Em menos de um mês estavam em Lixbuna colonienses, escoceses, flamengos, normandos e ingleses. Todos ao serviço d'El-Rei. Tinha superado os 15.000 homens de armas que se encontravam na Almedina. As forças eram de tal ordem, que iniciou um período de negociações. Durante os sucessivos tratos de tréguas e combates, os muçulmanos, comandados por Abu Mafamede trouxeram reféns. Entre os homens, mulheres e crianças que foram entregues estava Abel, um jovem judeu sefardita, que vivia na judiaria do local que viria a ser a capital. Renato ainda não tinha convertido o jeito de dedilhar o alaúde em manejo de armas. Tinha no peito mais coração que couraça. Foi-lhe incumbida a vigilância dos reféns. Era necessário protegê-los das intenções, por vezes duvidosas, dos cruzados. O cerco já durava há seis meses, os colonienses amotinaram-se e queriam levar reféns para seu uso pessoal. Renato ao ver um possante coloniense agarrar, pelo pescoço, um rapaz que aparentava ter a sua idade largou a correr na sua direcção e, concentrando em si toda a revolta que conseguiu, interpôs-se entre os dois e disse-lhe: - Para onde levais o refém d' El-Rei? Se lhe tocais trespasso-vos... juro que o faço! - disse com bravura e valentia, mal conseguindo suster o peso da lança que empunhava em tão tenra idade. Os seus olhos chamejavam, mas as mãos tremiam-lhe! O homenzarrão ainda avançou na sua direcção... mas Renato não vergou com a investida. Retirando as mãos de cima do rapaz, disse qualquer coisa que este não percebeu e retirou-se, balbuciando alguns palavrões. Os dois jovens trocaram um olhar e Renato, nervoso, correu para um canto e chorou de raiva. Não estava habituado aquelas lides... era ainda muito jovem e encarava o seu primeiro confronto. Foi a primeira vez que se cruzou com Abel. Mal sabia por esta altura que ainda haviam de se voltar a encontrar. Recomposto, contou o sucedido a seu pai, que posteriormente informou o rei. - Senhor meu Rei, alguns dos cruzados começam a perder o controlo, tendes de tomar uma atitude! O meu filho conta que maltratam mulheres e crianças sem olhar à sua condição... ainda agora um jovem da sua idade foi agarrado pelo pescoço e arrancado à família... sabe-se lá com que destino... não fosse o meu filho interpor-se... e... só Deus sabe senhor! El – Rei  mandou chamar os chefes dos cruzados e num tom áspero, disse-lhes: - Bons homens, vos afirmo por Nosso Senhor Jesus Cristo que antes prefiro retirar o cerco a combater nestas condições! A palavra aqui é minha. Soltem os reféns, preparem as torres e comecemos o assalto. Quem me desobedecer será tratado de pior forma que os sarracenos! Depois de conquistada Lixbuna a 2l de Outubro, uma terça-feira, estabeleceu-se o acordo de rendição e os termos da entrega deste novo território conquistado, o que veio a acontecer no dia 25 de Outubro de 1147».
In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.

continua
Cortesia de Ésquilo/JDACT