sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Considerações e Outros Textos. Agostinho da Silva. «Mudaram os assuntos e os estilos. Toda a gente se moldou a uma nova cadência e houve no mundo um zumbido diferente como de motor que acelera o andamento. Os que se deleitavam com a opulência da ‘Ásia’, pasmaram depois ante o agreste laconismo…»


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Retórica da Acção
«Não achas, caro Valério, que em face dos exemplos devemos modificar um pouco a ideia que tínhamos formado da retórica? Habituara-se o nosso espírito a olhá-la como a acumulação de frases bem ressoantes e balançadas, de períodos que todos se resolviam em música e larga sonoridade de palavras, de imagens que se ligavam ininterruptas e davam ao discurso aquele seu ar de fogo de artifício que prendia, subjugava a massa dos ouvintes. A oratória caracterizava-se ainda, depois de todas as críticas e de todas as troças, pelo romantismo das evocações e pelo gosto da ampla sintaxe; era-se tanto mais eloquente quanto mais se aproximavam os pensamentos da melancolia de Passos ou das indignações de Leal, quanto mais se assemelhava a forma ao talhe dos clássicos e se cometia a proeza de galgar uma página sem um ponto final. Seguia-se o exemplo que vinha de longe, aprendera-se com exactidão, embora com talento muitíssimo menor, aquela arte que Cícero ensinara de dizer sempre as mesmas coisas por diferentes maneiras, de fazer que uma única e pobre ideia se estendesse durante horas, sem uma circunstância, sem um aspecto, sem uma consequência que a pudessem renovar. O êxito de má literatura que daqui se colhia sobrelevava no ânimo de todos a inutilidade de tanta bela frase perante a prática. Nenhum problema encontrava a sua solução, não ficava melhor o país depois do suor do orador e dos aplausos do público. Após a festa nocturna em que o charco parecera por momentos incendiado de estrelas, espapava-se sob o mesmo silêncio de moleza a mesma lama infecunda.

O processo, no entanto, acabou por fatigar; sem que ninguém tivesse a coragem ou, porventura, a suficiente clareza de espírito para o dizer e reclamar outra vida, todos sentiam que a rodagem estava gasta. E bateram palmas quando se proclamou a queda da retórica, quando surgiram pessoas todas viradas à acção a quem o discurso importunava e tão exageradas, tão possuídas do seu fim que não distinguiam da eloquência de aparato o indispensável diálogo. Deixou-se de afirmar que o sonho e o arroubo eram vitais e passou-se ao tema de proceder e construir. O edifício da retórica que parecia tão seguro abateu-se num momento; sobre as ruínas outros homens se ergueram, claros, incisivos, duros nas expressões, ríspidos nos métodos, ansiosos de não perder tempo e que sem intervalo juravam a necessidade e o desejo de que todos agissem. Outros mesmos recusavam-se a falar, numa completa reacção, afastavam-se de tudo que se pudesse assemelhar aos ruídos e vãs disputas do foro, repeliam as grandes matinadas dos seus antecessores. Reinou a frase breve, com uma ordem de comando, o período curto e seco.
Mudaram os assuntos e os estilos. Toda a gente se moldou a uma nova cadência e houve no mundo um zumbido diferente como de motor que acelera o andamento. Os que se deleitavam com a opulência da Ásia, pasmaram depois ante o agreste laconismo. Simplesmente, como já compreendeste, caro Valério, continuaram a existir os dois imprescindíveis elementos do falar e do escutar; os que não oram exprimem-se por mímica, o que não é menos inútil. Poderíamos até constituir uma fábula sobre as idênticas rãs que por terem variado de tema ou emudecido à borda do paúl pretendem que os outros animais as tomem por castores; ao que se opõe a natureza». In Agostinho da Silva, Considerações e Outros Textos, Editorial Minerva, Alfinete 4, Assírio e Alvim, 1988.

Cortesia Assírio e Alvim/JDACT