terça-feira, 30 de outubro de 2012

Leituras. Kaputt. Curzio Malaparte. «… estes três cavalos brancos seguidos por uma rapariga de vestido amarelo eram tristes e muito belos. Mergulhados na água até aos jarretes, moviam a cabeça espalhando a crina sobre o arco alongado do pescoço…»


(1898-1957)
Prato, Itália
Cortesia de wikipedia

Os cavalos
O mundo de Guermantes
«O príncipe Eugénio da Suécia deteve-se no meio da sala. – Escute, disse ele.
Através dos carvalhos do Oakhill e dos pinheiros do parque de Waldemarsudden, para lá do braço de mar que penetra na terra até ao Nybroplan, no coração de Estocolmo, o vento trazia um terno e triste queixume. Não era o melancólico apelo das sereias dos barcos que vinham do mar para o porto, nem o grito brumoso das gaivotas; era uma voz feminina, distraída e dolente. - São os cavalos do Tivoli, o luna-parque que está diante do Skansen - disse o príncipe Eugénio em voz baixa.
Aproximámo-nos das grandes janelas que davam para o parque e apoiámos os rostos contra os vidros ligeiramente embaciados pelo nevoeiro azul que subia do mar. Ao longo do caminho que segue o declive da colina, três cavalos brancos desciam a passo incerto, seguidos por uma rapariga vestida de amarelo: passaram por uma porta gradeada e desceram até uma pequena praia repleta de cuters, de canoas e de barcos de pesca vermelhos e verdes.
Era um claro dia de Setembro, de uma delicadeza quase primaveril. O Outono avermelhava já as velhas árvores do Oakhill. No braço de mar sobre o qual avança o promontório em que está construída a vila de Waldemarsudden, residência do príncipe Eugénio, irmão do rei Gustavo V da Suécia, passavam grandes barcos cinzentos levando, pintados no costado, grandes pavilhões suecos de cruz amarela sobre fundo azul. Nos seus voos, as gaivotas gritavam queixumes roucos como soluços de criança. Lá em baixo, ao longo dos cais do Nybroplan e do Strandwägen, viam-se balançar os vapores brancos, com doces nomes de aldeias e de ilhas, que andam numa roda-viva entre Estocolmo e o arquipélago. Atrás do arsenal, uma nuvem de fumarada azul silvava, cortada de tempos-a-tempos pelo relâmpago branco de um esvoaçar de gaivotas. O vento trazia o som das pequenas orquestras do Belmannsro e do Hasselbacken, os gritos de um grupo de marinheiros, de soldados, de raparigas e de crianças em redor dos acrobatas, dos malabaristas e dos músicos ambulantes que estacionavam todo o dia diante da entrada do Skansen.
O príncipe Eugénio seguia os cavalos com um olhar atento e afectuoso, os olhos semicerrados sob as pálpebras claras, estriadas de finas artérias azuis. Visto de perfil, em contraluz, na claridade lânguida do poente, o seu semblante rosado, com aqueles lábios um pouco túmidos, gulosos, aos quais o bigode branco dava uma amabilidade quase pueril, aquele nariz aquilino, a fronte alta coroada de cabelos muito brancos, frisados, despenteados como os de uma criança quando acorda, ofereciam ao meu olhar o desenho de medalha do rosto dos Bernadotte. De toda a família real da Suécia, aquele que mais se parece como marechal de Napoleão, fundador da dinastia, é o príncipe Eugénio; e este perfil nítido, cortante, quase duro, contrasta singularmente com a doçura do seu olhar, a delicada elegância da sua maneira de falar, de sorrir, de mover as suas belas mãos brancas de dedos pálidos e finos, as mãos dos Bernadotte. Eu tinha ido-ver, alguns dias antes, num estabelecimento de Estocolmo, os bordados que o rei Gustavo V, no decurso das longas noites de Inverno, no palácio real desenhado por Tessin, e nas brancas noites de Verão, no seu castelo de Drottningholm, rodeado dos seus familiares e dos dignitários da corte mais íntimos, fazia com uma graça, uma delicadeza de desenho e de execução que lembravam a antiga arte veneziana, flamenga e francesa. O príncipe Eugénio não borda: é pintor. A sua forma de vestir revela essas maneiras livres, negligentes do Montmartre de há cinquenta anos, do tempo em que o príncipe Eugénio e Montmartre eram jovens. Está vestido com uma espessa jaqueta de tweed cor de tabaco, num corte fora de moda, abotoando alto.
Sobre a camisa azul-pálida, com fios brancos um pouco fanados, uma gravata de tricot, torcida como uma trança de cabelos, punha a sombra de um azul mais escuro. - Todos os dias, a esta hora, eles descem até ao mar - disse o príncipe Eugénio em voz baixa. Na claridade rósea e azul-clara do poente, estes três cavalos brancos seguidos por uma rapariga de vestido amarelo eram tristes e muito belos. Mergulhados na água até aos jarretes, moviam a cabeça espalhando a crina sobre o arco alongado do pescoço e relinchavam. O Sol escondia-se. Havia já muitos meses que eu não via o pôr-do-sol». In Curzio Malaparte, Kaputt, Edição Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, Lisboa.

Cortesia E. Livros do Brasil/JDACT