quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. António José Saraiva. «E já antes do monarca Dinis o culto das Musas parecia hereditário na família real portuguesa, porque um bastardo de Sancho, filho também da mulher a quem é dedicado o seu cantar de amigo, versejou a uma dama que se encontrava em Montemor»


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«Uma destas cópias foi encontrada em Itália, na biblioteca do conde Brancuti, e está hoje na Biblioteca Nacional de Portugal; a outra, na Biblioteca do Vaticano. Ambas pertenceram ao humanista italiano Angelo Colloci (1467-1549). Destes três Cancioneiros – o da Ajuda, o da Vaticana e o da Biblioteca Nacional -, o mais antigo e o mais incompleto é, como dissemos, o da Ajuda, que contém unicamente poemas ‘de amor’ anteriores ao fim do reinado de Afonso III, época em que deve ter sido compilado. Os outros dois incluem não só a grande parte do material reunido no códice da Ajuda, mas ainda obras produzidas até muito mais tarde (até 1340, pelo menos) e de outros géneros: cantares de amigo e cantares satíricos, chamados de escárnio e maldizer. O Cancioneiro da Biblioteca Nacional é o mais completo porque reúne todas as poesias contidas no da Vaticana e muitas outras que ali faltam. O valor especial do Cancioneiro da Ajuda vem de ser o único contemporâneo da época trovadoresca, ao passo que os outros dois são cópias muito incorrectas feitas na Itália, quase dois séculos depois da compilação original.

A tradição dos jograis galegos nas cortes hispânicas
O projecto de reunir num códice de luxo as composições dos poetas da corte é um grande acontecimento na história cultural portuguesa. Mas o hábito de versejar vinha de mais longe. Uma grande parte das composições reunidas nos cancioneiros são-lhe muito anteriores. O mais antigo trovador conhecido, João Soares de Paiva, nasceu poucos anos depois da batalha de Ourique, sendo portanto ainda contemporâneo do primeiro rei de Portugal. O filho e sucessor deste rei, Sancho, casado com uma princesa de Aragão, irmã de Berenguer IV (trovador e grande protector de trovadores provençais), compôs provavelmente um cantar de amigo e teve jograis na corte.
Um destes usava o nome de.Bonamis e outro o de Acompaniado. E já antes do monarca Dinis o culto das Musas parecia hereditário na família real portuguesa, porque um bastardo de Sancho, filho também da mulher a quem é dedicado o seu cantar de amigo, versejou a uma dama que se encontrava em Montemor, provavelmente por ocasião do cerco de 1213.
Os jograis galegos ou galego-portugueses são anteriores à fundação da monarquia portuguesa. Pertencia à corte de Afonso VII e ocupava nela um lugar honroso o jogral Pallea (Palha), que vimos corroborar um foral em 1136. E, no fim deste século ou começo do seguinte, o galego-português é conhecido dos poetas cultos da cristandade como uma das quatro ou cinco línguas em que se versejava à maneira provençal.
Entre 1195 e 1202, na corte de Bonifácio de Montferrat, no Piemonte, o poeta provençal Raimbaut de Vaqueiras, querendo decerto ostentar a sua erudição, compôs um poema em cinco línguas, provençal, francês, italiano, gascão e galego-português. O galego-português representa aqui toda a Península Ibérica, excepto Aragão, onde se trovava em provençal e se falava uma língua muito afim da do outro lado dos Pirenéus. Esta composição confirma a existência de jograis galego-portugueses, pelo menos, algumas décadas antes.
Os Provençais foram os mestres dos trovadores da Península Ibérica. A Provença e a Catalunha eram regiões culturalmente afins, nem sempre divididas por fronteiras políticas. Os trovadores que transpunham os Pirenéus facilmente se faziam ouvir nas cortes aragonesas, onde eram protegidos e premiados». In António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Gradiva Publicações, Lisboa, 1998, ISBN 972-662-157-7.

Cortesia de Gradiva/JDACT