quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «O morro da Aguada encimado por um bojudo reduto, como guarda avançada na foz do Mandovi, espalha em noites procelosas a luz que encaminha o nauta para as terras de Goa. Por baixo, à flor da água, correm as casas volteando a curva do promontório de Bardez…»

(1859?-1922?)
Goa
jdact

Quem reviveu numa hora ardente
de sonho altivo e de paixão
a vida antiga e resplendente
do país tomado ao Idalcão.

Viveu decerto a vida heróica
dos seus avós que já la vão
num sonho augusto de alma estoica
numa ideal transfiguração.

Vida de sonho, breve embora,
ninguém a vive rúbida hora
se a lama o prende pelos pés.

Vivê-la é ter um peito forte
diante do mal e a dor e a morte
um coração bem português.
Soneto de Nascimento Mendonça, dedicado a Frederico D’Ayalla

Goa
Mal assoma a barra da Aguada, transpondo a última sinusidade da costa brava, ao sul despontam os casarios e os baluartes, caiados de branco, que mansamente vão subindo e encosta do promontório de Mormugão. Dobramos as praias de Galvão, mais propriamente rochedos batidos por grossas vagas, que de longe se ouvem quebrar com a monotonia e placidez próprias do oceano. No Inverno, por entre aqueles cachopos, espuma o mar as suas mal contidas iras. A onda monta, e desdobrando-se com fúria vai de arremesso contra os negros penedos, que a água tem cavado em configurações estranhas. Chocando-se, fundindo-se, as vagas rolam marulhando uns ruídos cavos, que a resistência da costa transforma em grito medonho. As águas espirradas pelo embate sobem como um véu de gaze prateado pelo sol. E em breve o que era coberto de um lençol branco e crepitante, desnuda-se e deixa ver as coroas de musgo e algas alastrando-se sobre o dorso dos rochedos, reluzentes, movediças, como as serpentes.
O morro da Aguada encimado por um bojudo reduto, como guarda avançada na foz do Mandovi, espalha em noites procelosas a luz que encaminha o nauta para as terras de Goa. Por baixo, à flor da água, correm as casas volteando a curva do promontório de Bardez, e defendidas do mar pelas cortinas quase simétricas, brancas e uniformes, como a dentadura de um leão. Estamos à boca do Mandovi sereno e brando.

Lusíadas
E correram para a glória lançados de uma pedra alta.
Brotaram como ventos debruados de cruzes e crescentes
ébrios de fome e loucos sem mar que lhes bastasse.
Amaram os horizontes rápidos de sal e de corais,
precipitaram-se no prazer e no sofrimento
como quem ama o clamor de um deserto açoitado pela aragem.
E, pouco a pouco, se espalharam num reino de ausências
crónica de uma alegria que tinha gosto a crueldade:
arrastaram sabres sobre carne jovem
temperaram muralhas com clarões de pólvora,
oh gente flagelada pelos signos do fogo
não coubestes dentro de vós
procurastes a companhia das estrelas.
Que encanto a vossa migração ensandecida!
Que sandálias no faro da distância!
Que chiqueiro na tenda de pimentas e rubis!
Era um divino rumor entre as palmeiras
e frondes
os perdestes como jardins à noite.
Adalberto Alves, in ‘Oriente em Mim

Na margem esquerda, rompendo por entre copados cajueiros, encara o mar o Convento do Cabo. Quantas vezes não ouvi eu os sinos da Aguada e do Cabo, no calado de um dia sereno e límpido, espalhando mansamente seus sons pelo níveo seio do imenso mar! Como essas notas aflitivas me traziam à mente os ecos gloriosos de um passado ruidoso e homérico! Como é triste espraiar a nossa saudosa vista pelo litoral eriçado de fortalezas e ir, após um aleluia fictício, assistir ao miserere entoado por entre as ruínas de uma cidade deserta! Uma legião de espectros nos espera para entoarmos uma elegia sobre o túmulo da nossa grandeza!

Ó cisne!
Deixa-me voar até aquela terra
onde reina o meu Amor.
Sem corda e sem balde
do poço tiram água as donzelas.
Lá há chuva, sem que haja nuvens
e banha a minha forma incorporal.
E em cada noite brilha a lua cheia
e em cada dia há luz que resplende
na miríade faiscante do sol.
Kabir (1398-1518), in ‘Canções de Amor

largo de S. Pedro em Murgão
ilustracao de armandopedro

Entre Gaspar-Dias e Reis-Magos, redemoínham as vagas nos bancos de areia. As ondas fervem, quebram-se, rodopiam, e as gaivotas, sacudindo as asas, dão caça aos peixes. O barco entretanto singra lentamente, evitando o baixio. Por entre as palmeiras espreitam as casas de campo e os casebres angulosos cobertos de ola, sobre os quais as gralhas, espicaçando a presa, grasnam de contentes. Sobre a areia quente de Caranzalem os pescadores compõem as redes, cantando. Vai-se descobrindo a parte ocidental de Pangim. O coreto de música, o hospital-barraca, as pontes de Minerva e Marta, as meias-laranjas e os bancos de pedra saltam aqui e ali no Campal, como alvas tendas em meio de um oásis. Largas ruas enfiam a vista para o interior da cidade, meio coberta de densos palmares. Nas tardes de Maio, a brisa da tarde rumoreja por entre os lestos ramos da palmeira um ciciar muito parecido com o bater das asas de uma ave; o vento do mar alto sacode os troncos das mangueiras e jaqueiras num ruído flácido e sussurrante, próprio do bosque; a areia volteia em espirais pelo Campal, e o mar ronca, imitando o despenhar de uma cascata, por entre os bancos de Gaspar-Dias». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de Ésquilo/JDACT