sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. Miguel Vicente Abreu. «… os amores malogrados, os rancorosos despeitos, tudo enfim de que se usa e se abusa, era, as mais das vezes, outros tantos motivos ao émulo gratuito para ir tristemente denunciar o seu inimigo à Inquisição (maldita) e fazer vitimar traiçoeiramente um inocente»

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‘A Historia é rara! In Heidegger.
Será só arqueológico o interesse desta tão célebre e mal conhecida Narração de Dellon? Numa cultura, a portuguesa, que colheu durante três séculos o sistema inquisitorial (prolongado já no nosso tempo por mais 48 anos), e que em simultâneo criou um país de negreiros durante quatro séculos, a história da Inquisição (maldita) não pode simplesmente fruir-se no sossego distanciado da leitura. Essa história mantém-se ainda em múltiplos interstícios da vida mental portuguesa, que vão da submissão canina às hierarquias até à impopularidade notória de quem nega os deuses sociais. Tem outros nomes hoje, e outras teias, o Santo Ofício (maldito) de tão má memória’.

«Não são menos de repreender os prémios, que os delatores recebem, do que as suas más acções, porquanto resolvem tudo pelo ódio e pelo terror. Lavrava nos servos a corrupção contra os senhores, nos libertos contra os patronos; e até as pessoas que não tinham inimigos eram por seus amigos oprimidas.
[...] Este livro, impresso na Holanda no ano de 1667, se intitula Relation de I'Inquisition de Goa, em que o seu autor, o médico francês Dellon, faz públicos os sofrimentos de quatro anos de sujeição que teve à inquisição (maldita) de Goa, e dá uma curiosa noção histórica do regime daquele tribunal, do seu edifício, das suas especialidades, etc.
Remontando à origem daquela instituição em geral, diremos aqui, sem tacha de sermos exagerados, e mesmo com uma verdade muito sabida na república literária, que em todos os países que admitiram o tribunal da Inquisição (maldita) se tornou ele um horrível flagelo da sociedade humana; um tribunal feroz e sanguinário; e um recurso constantemente aberto ao inimigo de qualquer homem, que por talento, riqueza ou outro motivo se avantajasse ao seu semelhante; foi enfim uma fonte perene de incalculáveis males, os quais se sentiram principalmente em Goa, pais retalhado, como todos sabem, agora e sempre, por mil mofinas diferenças de castas, cores e seitas e urdido de tantas intrigas intestinas que produziam outros tantos émulos.
Leiamos as Memórias dos desembargadores Magalhães (Nova Goa, 1859) e Lousada
(Anais Marítimos e Coloniais), em que ambos aqueles escritores quase ipsis verbis dizem acerca da Inquisição (maldita) de Goa o seguinte:
  • ‘Por fim a Inquisição (maldita), esse tribunal de fogo, arrojado na superfície do globo para flagelo da humanidade, instituição horrível, que eternamente cobrirá de opróbrio os seus autores, fixou seu brutal domicílio nos férteis plainos do Industão. Ao aspecto do monstro tudo fugiu e desapareceu, mogores, arábios, persas, arménios e judeus. Os indianos mesmos, os mais tolerantes e pacíficos, pasmados de ver o Deus do cristianismo mais cruel que o de Maomé, desertavam do território dos portugueses para o dos mouros, com quem o tempo os havia congraçado, não obstante haverem deles recebido enormíssimos e incalculáveis males. Desta maneira ficaram ermos campos e cidades, como estão hoje Diu e Goa’.
Num tribunal destes facílimos era pois cevar-se a paixão da inveja, baixa e vil pela sua cobardia, e tão propensa para a calúnia quanto longe estava de ser em tempo algum descoberta, tribunal que, além de estender a sua jurisdição a cristãos, gentios e mouros, se abalançava ainda a julgar das acções mais indiferentes da sua vida, alcunhando-as de actos de culto, horrorizando-os e fazendo assim desaparecer com eles o vasto comércio desta terra.

Uma maior prosperidade em qualquer empresa, uma fortuna superior, uma acção de mérito e louvor, a importância social, a estima pública ganha pelo trabalho, maior benquerença que a do seu vizinho, o não ser da mesma casta, da mesma cor ou da mesma seita religiosa, uma opinião prejudicada, as rivalidades de famílias, os amores malogrados, os rancorosos despeitos, tudo enfim de que se usa e se abusa, era, as mais das vezes, outros tantos motivos ao émulo gratuito para ir tristemente denunciar o seu inimigo à Inquisição (maldita) e fazer vitimar traiçoeiramente um inocente, por ele acusado perante o mesmo tribunal, ou de ter pronunciado um discurso irreligioso, ou blasfemado da divindade, ou desacatado as imagens dos santos, ou motejado do tribunal, ou desconsiderado o supremo cabeça da Igreja, etc.; e cá em Goa até de ter apontado com o dedo o Orlem Goro, ou Casa Grande, que é como por antonomásia nomeavam o grandioso palácio da Inquisição (maldita) desta cidade!»

“Em parte alguma foi a Inquisição (maldita) mais rigorosa do que em Goa”. In Bouillet.

In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

Cortesia de E. Antígona/JDACT