sábado, 24 de novembro de 2012

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «… os novos senhores não se mostraram muito interessados na libertação dos camponeses que, como quinteiros, ficaram adscritos ao quinto, isto é, ao quinto das terras conquistadas à viva força e destinado ao Tesouro dos muçulmanos»

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A Formação da Sociedade de al-Ândaluz
«Alguns autores menosprezaram o número dos recém-chegados. No entanto, os relatos muçulmanos falam em 30 mil árabes e principalmente berberes. A estes há que juntar os 400 árabes de Ifriqiya que acompanharam al-Hurr ibn Abd al-Rahman, os árabes do governador al-Samh ibn Malik al-Khawlani, os 7 000 sírios das tropas de Baly e os militares da hoste do governador Abu l-Khatar al-Husam ibn Dirar al-Kalbi. Os bárbaros que invadiram a Península no século V não seriam mais numerosos. Por outro lado, os afluxos berberes e também árabes continuaram ao longo dos quinhentos anos.
A vinda de gente do Oriente é sensível no tempo dos emires, em particular de Abderramão I e II. As emigrações e colonizações berberes forneceram mercenários a Abderramão I e às tropas de Almançor Abu Amir e incorporaram com milhares de membros as invasões e colonizações berberes no tempo das dinastias almorávida e almóada.
Segundo o Código Visigótico, quase todos os caminhos levavam à servidão:
  • o nascimento e o casamento com serva,
  • o cativeiro e o consentimento voluntário,
  • o abuso da força e as sanções penais por rapto,
  • adultério e estupro,
  • insolubilidade e abandono da mulher casando com outra,
  • consultas de adivinhos e falsificação de moeda, etc.
Por outro lado, a feroz perseguição movida pelo poder eclesial-militar visigótico aos judeus, há muito instalados como mercadores em todo o Mediterrâneo, forneceria, logo na primeira hora, aliados preciosos aos conquistadores que lhes entregaram a guarda de algumas cidades.
As decadentes cidades hispano-romano-godas opuseram fraca resistência. E após a conquista e durante as guerras tribais e as guerras entre baladis e os sírios de Baly, não se sublevaram devido não só à fraqueza dos poderes derrotados como à conversão de comerciantes, alguns senhores e principalmente servos citadinos à nova religião que lhes proporcionava a liberdade pessoal. E assim os muladis ou cristãos muçulmanizados e clientes dos notáveis das tribos invasoras são visíveis desde os primeiros momentos.
Nos primeiros anos, durante as guerras tribais, o chefe dos sírios Abu al-Katar al-Sumail pediu auxílio à gente do mercado de Córdova, facto que parece sugerir não só a liberdade pessoal destes como a muçulmanização de boa parte da população cordovesa. Aliás, os muladis ou cristãos muçulmanizados são visíveis desde as primeiras horas. E no levantamento do arrabalde de Córdova contra al-Hakam I em 817, a gente do arrabalde é então mais ortodoxa que o próprio emir a quem doestam com os gritos:
  • “Vem, rezar borracho.”
Em contrapartida, os novos senhores não se mostraram muito interessados na libertação dos camponeses que, como quinteiros, ficaram adscritos ao quinto, isto é, ao quinto das terras conquistadas à viva força e destinado ao Tesouro dos muçulmanos. Os invasores combatiam ligados pelos laços da tribo e do clã, ciosos do seu sistema familiar endogâmico e patrilinear.
Como mostrou Pierre Guichard, este sistema social de tipo tribal e clânico, característico dos povos árabes e berberes, condicionou a evolução posterior da sociedade andaluza e do poder político e militar aí instalado. Em primeiro lugar, não permitiu a absorpção do novo aparelho religioso-político-militar pelo corpo dos poderes vencidos. Pelo contrário, os peninsulares só acedem ao novo poder integrando-se nele como clientes das tribos e dos clãs.
  • “Tenho tribo mais numerosa que a tua”. “Esta é a tua glória e a glória da tua tribo”, exclamava Abu al-Katar al-Sumail, chefe dos cáicidas, enquanto degolava cálbidas na igreja onde se iria edificar a mesquita maior.
Artobás e os seus filhos mantiveram-se como cristãos mas tiveram que repartir largamente as suas terras. Ao contrário, sua sobrinha Sara a Goda constitui o exemplo da introdução das mulheres peninsulares na família agnatícia e poligâmica dos conquistadores». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

continua
Cortesia de Instituto Camões/JDACT