sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Herculano e a Geração de 70. João Medina. «Raramente um homem terá suscitado tão unânime e severo coro de impropérios, verdadeira cascata de doestos chovendo durante anos a fio sobre o lendário guarda-chuva do professor Teófilo»

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Teófilo contesta Herculano
[…] a crítica que o brasileiro Machado de Assis escreveu em A Semana, no mesmo ano em que o nosso historiador havia de desaparecer, ou seja, em 1877:
‘Quem era certo cavaleiro italiano que gastou a vida dele a duelar-se em defesa da Divina Comédia, sem nunca a ter lido? Eu sou esse cavaleiro apenas por um lado, que é o lado dos que dizem que, a não fazer Herculano livros de história, deve fazer outra coisa. Mas confesso que preferia ao pé do seu azeite o seu estilo; e de bom agrado receberia de suas mãos o livro e a luz. Dar-me ele a luz e o Sr... os livros, é uma disparidade que não chega a vencer o sono... Por melhor que seja o azeite. Suspendamos o riso, que é alheio a estas coisas. Sunt lacrimae rerum. Pois quê! Um homem levanta um monumento, escreve o seu nome ao lado de Grote e Thierry, esculpe um Eurico, desenterra da crónica admiráveis novelas; é um grande talento, é uma erudição de primeira ordem, e no vigor da idade retira-se a uma quinta, faz da banca um lagar, engarrafa os seus merecimentos, entra em concorrência com o Sr. N. N. e nega ao mundo o que lhe não pertence a ele!’. Isto escrevia pelos Brasis, a l de Agosto de 1877, o autor de Quincas Borba, dividido entre a admiração moderada e a indignação formal, e cerca de um mês depois, mais exactamente a 13 de Setembro desse ano, falecia aquele que trocara a literatura pelo amanho das terras, o livro pelo azeite. Mas nem todos, aqui em Portugal, saudaram com a comovida e nobre admiração de um Antero o desaparecimento do exilado de Vale de Lobos. Alguns membros da geração de 70 não hesitaram mesmo, ainda em vida do historiador, em desfechar-lhe censuras e admoestações, umas originadas no despeito, porventura o caso de Ramalho, outras num misto de azedume, ressentimento e vesga raiva de confrades do mesmo ofício, e aqui cabem os nomes de Teófilo e Adolfo Coelho, ambos injustíssimos no que escreveram acerca do autor de O Bobo. Ramalho, Teófilo e Coelho formam, portanto, o segundo pelotão dos juízes do valor e da acção do gigante que baixou à terra nesse ano de 1877. Deles, divergem, um Antero ou um Eça, o primeiro calorosamente admirativo da estatura intelectual e moral de Herculano, o segundo ironicamente traduzindo o retiro para Vale de Lobos em paradigma de um dilema ético-político condensado numa expressão de recorte chistoso, o tal ‘plantar legumes’, posto na boca de João da Ega, numa crónica sua, o mesmo Eça traduziria o ‘il faut cultiver notre jardin’ de Voltaire num ‘plantar quietas saladas num murado e frondoso quintal’, plantio que, afinal, se mostrava proveitoso e positivo, sobretudo em contraste com o mariposear todo fútil e absolutamente improfícuo de certos vencidos, como Carlos da Maia e outros intelectuais da geração de 70, caricaturados nessa sátira transcendental chamada Os Maias, publicada, aliás, no mesmo ano em que o Governo promovia a trasladação dos restos mortais de Herculano para os Jerónimos.
Examinar o verdadeiro anti-Herculano obstinadamente erguido por Teófilo é entrar nos meandros de um dos mais complexos e mórbidos labirintos do nosso oitocentismo: há aqui, nesta entranhada e facciosa máquina de guerra teofiliana montada contra o patriarca de Vale de Lobos, um contencioso que transcende a mera antipatia entre dois homens do mesmo ofício, ainda por cima portugueses, ou seja, respirando no acanhado espaço mental de um País sem reais tradições de sadio labor do espírito, numa anárquica, azeda e reimosa República das letras onde, em geral, todos se detestam, caluniam e mutuamente se vilipendiam. Mas não basta recorrer a esta sumária sociologia do nosso meio literato, vespeiro de intelectuais estropiados ou subalternizados perante uma burocracia esterilizante, um público ledor muito restrito e uma Universidade amesquinhada por autoritarismos de diversa índole, para explicar o ódio que movia a pena do professor do curso de Letras contra aquele que, aliás, recusara uma cadeira nessa mesma instituição, não obstante a estima que lhe votava o seu fundador, Pedro V. A mera explicação ideológica também nada resolve. Burgueses ambos, de mediana extracção, um deles vivendo da lavoura e o outro do professorado, o lisboeta e o micaelense só tinham, afinal, a separá-los uma linha puramente conceptual, uma divergente Welt und Lebensanschauung:
  • um era liberal, romântico, progressista, medularmente médio burguês e afecto à ideia de uma monarquia representativa, educada e constitucional;
  • o outro, convulsivamente positivomaníaco e jacobino, ‘espécie de Marat de soalheiro’, (fala Quental), homem de ressentimentos, eterno despeitado ao longo da sua dilatada carreira de literato, olhando de soslaio o conterrâneo Antero de Quental, tomando poses de rã da fábula ao lado dos demais membros da geração de 70, poupando Eça e poucos mais, demolindo todos os precursores, venerando apenas os Santos Padres do positivismo, Comte e Littré, fulminando adversários políticos e ideológicos com a suficiência toda doutoral de um grande mandarim omnisciente e sectário, suscitando antipatias que o perseguem desde os bancos da Universidade até ao enterro, em 1924, injuriando a torto e a direito, invectivando e ripostando raivosamente à matilha dos detractores, eis num relance a árdua trajectória de um dos mais detestados e detestáveis literatos portugueses modernos.
Bastará, para nos apercebermos bem da auréola de ódios eriçados em seu redor, citar quase que a esmo umas quantas pedradas críticas vibradas daqui e dali, desde o rabujento Camilo a homens do novecentismo, como Teixeira Gomes ou Unamuno:
  • cérebro atrapalhado, bexiga de gases maus, besta e pedante, assim o definia Camilo;
  • pobre muñeco', insoportabre escritor, latoso pedante,(assim falava Don Miguel de Unamuno;
  • velho grotesco, destemperado, confidência de Teixeira Gomes, em 1911;
  • pequenino miserável, nulo, mau tolo, vilãozinho muito mesquinho, sofrendo da hidrofobia dos infinitamente pequenos, chibatadas polémicas vibradas por Antero em 1872;
  • paspalhão português, saloio desequilibrado, papa dos charlatães, maníaco açoriano, ilheuzinho das Arábias, cigano e perfeito degenerado, trabuzanada mandada do Brasil pelo excessivo Sílvio Romero), etc.

Raramente um homem terá suscitado tão unânime e severo coro de impropérios, verdadeira cascata de doestos chovendo durante anos a fio sobre o lendário guarda-chuva do professor Teófilo». In João Medina, Herculano e a Geração de 70, Edições Terra Livre, Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.

Cortesia de Terra Livre/JDACT