quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «Disse que é lembrado testemunhar o que sabia disso diante de Pedro Álvares de Paredes, inquisidor de Évora, onde dissera o que sabia de Damião de Goes e de frei Roque de Almeida, de coisas que lhes ouvira, havia já muito tempo, em Pádua e em Veneza»


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[…] E que isto é o que lhe ao presente lembra; que, lembrando-lhe outra alguma coisa mais que ele o dirá. E que isto é verdade pelo juramento que recebido tem e que o diz por descargo de sua consciência e por serviço do Nosso Senhor e não por ódio nem inimizade que tenha a nenhum dos susditos, porque lho não tem, mas por assim passar na verdade. E al não disse. Foi-lhe mandado ter segredo, sob cargo do juramento que recebido tinha e ele assim o prometeu, e assinou aqui com o dito senhor inquisidor. Garcia Lasso, notário apostólico e da Santa Inquisição (maldita) que o escrevi.

As quais culpas, eu Manuel Antunes, Notário Apostólico e deste Santo Ofício (maldito) da cidade de Lisboa e seu distrito trasladei, bem e fielmente das que ficam em a casa do segredo desta dita cidade, com a entrelinha que sai à margem que diz ‘disse que eram sobre toda a Sagrada Escritura’, a qual fiz na verdade; e concordam de verbo ad verburn com as outras de que as trasladei. E por assim ser, as concertei com o notário abaixo subscrito e ambos as assinamos de nossos sinais rasos. Em Lisboa, aos nove de Abril de mil quinhentos e setenta e um anos. Manuel Antunes, concertado comigo, Jonnnes Velho, notário.

Foram tirados e concertados dos próprios originais, bem e fielmente, por mim, dito notário, por mandado do senhor inquisidor e por certeza de verdade assinei de meu sinal raso. Garcia Lasso, notário apostólico e da Santa Inquisição (maldita) que o escrevi. Não faça dúvida a entrelinha que diz coisas, e os  mal escritos que dizem terano, meses, lybro - Garcia Lasso.

Pronúncia
Foram vistos estes autos na Mesa do Conselho Geral do Santo Ofício (maldito), estando presentes os inquisidores e pareceu que as culpas de Damião de Goes eram obrigatórias a prisão e que fosse preso, com todo o resguardo que convém a sua pessoa, e para se lhe tomarem os livros luteranos que se presume que terá. E que contra frei Roque, por ser defunto, se não procedesse por não haver prova inteira, conforme ao Regimento. Em Lisboa, ao derradeiro de Março de 1571. Manuel de Quadros.

3.ª Denúncia de mestre Simão Rodrigues contra Damião de Goes e contra frei Roque de Almeida
Aos 24 dias do mês de Setembro de mil quinhentos e cinquenta anos, em Lisboa, na Casa do Despacho da Santa Inquisição (maldita), estando aí o reverendo padre mestre, frei Jerónimo da Azambuja e o doutor Ambrósio Campelo, deputados da Santa Inquisição (maldita), mandaram vir perante si a mestre Simão, reitor do Colégio de Jesus, e lhe deram juramento dos Santos Evangelhos e lhe fizeram pergunta se era lembrado de, seis ou sete anos a esta parte, dizer alguma coisa, no Santo Ofício da Inquisição (maldito), de algumas pessoas que andavam apartadas da fé e seguiam os erros luteranos.
Disse que é lembrado testemunhar o que sabia disso diante do licenciado Pedro Álvares de Paredes, inquisidor de Évora, onde dissera o que sabia de Damião de Goes e de frei Roque de Almeida, frade de S. Francisco, de coisas que lhes ouvira, havia já muito tempo, em Pádua e em Veneza, e que tudo se acharia escrito em seu testemunho; e que, por haver muito tempo que testemunhara, terá trabalho em tornar a recompilar tudo. Que pedia lhe lessem seu testemunho porquanto nele dissera todo o que sabia, e que se lhe agora mais lembrar que ele o dirá.
E lhe foi logo lido e declarado todo seu testemunho, que tinha dado perante o dito inquisidor de Évora, dos sobreditos Damião de Goes e frei Roque. E por ele mestre Simão foi dito que aquele era seu testemunho e que assim se passara na verdade, como nele tinha dito e declarado. E disse ele testemunha e declarou que, no artigo onde diz saber ele testemunha que Damião de Goes tinha autoridade entre os luteranos, que isto não sabia por outra razão, somente por ele Damião de Goes lhe falar em muitos dos luteranos, e amostrar que tinha com eles amizade. E que lhe não lembra o nome dos luteranos, salvo de Simão Grineus. E que assim dizia, lembrando-lhe mais que indo ele testemunha um dia, em Pádua, em casa do dito Damião de Goes, no tempo que tem dito em seu testemunho, estando aí o padre frei Roque d’Almeida, só sendo ausente o dito Damião de Goes, o dito frei Roque o convidou, em um dia defeso pela Igreja, com coisas defesas que, a seu parecer, eram queijos frescos; e insistiu muito com ele testemunha que comesse. E que ele nunca quisera comer. E que também lhe parece que o dito frei Roque comia carne e que estava mal disposto. E que parece a ele testemunha que ainda que o fizesse por sua má disposição, o fazia por lhe parecer que o podia fazer por as coisas que com ele tinha praticado. E disse mais ele testemunha, que, estando em Pádua, no tempo que tem dito, em casa do dito Damião de Goes, disputaram um dia ambos a saber: ele e Damião de Goes, sobre a certeza da graça, segundo sua lembrança. E que ele testemunha lhe alegou uma autoridade de São Paulo, de uma das Epístolas a Coríntios, a qual, ao presente, lhe não lembra; e fazia, segundo parece, ao seu propósito, dele Damião de Goes. A qual ele testemunha dissera para lhe mostrar que aquela fazia mais a seu propósito que a que ele dizia, mas que nem uma nem outra provavam o que ele Damião de Goes dizia. A qual autoridade ele Damião de Goes alegava, depois, muitas vezes contra ele testemunha; e que em esta disputa o dito Damião de Goes dizia que os homens podiam ser certos que estavam em graça. E al não disse. E que lhe não lembrava do que dito tem, nem que os sobreditos mais declarassem suas tenções do que ele testemunha tem declarado em o dito seu testemunho. E do costume disse que é amigo dos sobreditos; e foi-lhe mandado ter segredo sob cargo de juramento. António Rodrigues o escrevi. - Frei Jerónimo d’Azambuja. Mestre Simão. Ambrosius»

In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT