segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «No seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários, “o individual e o colectivo”, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio, “o individual”, chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no “segundo”»

Feliz Ano Novo
2013

jdact e cortesia de wikipedia

Época singular! Em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização -Einstein e Broglie, e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece.



Época em que é possível um tal campear do cinismo que um ministro holandês propõe, numa conferência internacional, a interdição do bombardeamento aéreo do inimigo em tempo de guerra, para que alguns dias depois um avião holandês lance, sobre um barco holandês, em tempo de paz, uma bomba que semeia a morte a bordo [Estávamos, nessa altura, em 1933. O cinismo campeava já, mas não tinha sido ainda arvorado em método político. Largo caminho andado nestes seis anos]; mas em que é também possível um tal florescimento de virtudes, que um homem, velho e fraco, consegue, quase só com o poder da sua alma que é forte, agitar milhões de homens num esforço de emancipação nacional e, o que é mais, de libertação de uma casta dos preconceitos que a escravizam, excluindo-a do convívio humano.


Época em que se verifica um tão grande desprezo pela existência alheia que na sombra se prepara, metodicamente, sistematicamente, cientificamente, a destruição do homem; mas em que ao mesmo tempo existe uma tal admiração pelo corpo humano que, num vasto movimento de cultura física, ele se enaltece e glorifica no que tem de nobre e belo-antítese simbólica do nosso tempo: preparação da guerra química e salão do nu fotográfico.


E é numa época assim, tão intimamente trabalhada por antagonismos irreconciliáveis, que se pretende vir falar-vos num problema central? Não estará errado pela base o título e intenção desta conferência? É o nosso tempo susceptível de mais do que de pequenos problemas parcelares sem conexão uns com os outros e reflectindo, na sua pulverização, o amorfismo actual?



É a estas perguntas, que a mim mesmo tenho posto com angústia, que vou procurar dar uma resposta. Para ela, não reivindico outra categoria de valor que não seja a honestidade com que foi procurada. Sei demasiado, para que outro mérito pretenda ver-lhe atribuído, quanto são falíveis ainda os juízos mais prudentes, e, se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.



Do mesmo modo que é impossível, pelo simples exame de alguns minutos, descobrir, no bater das ondas numa praia, o movimento regular das marés, assim também quem se detiver na contemplação de um único momento histórico não poderá surpreender o ritmo da evolução que o determina e condiciona. Num como noutro caso, só o recuo que forneça aos fenómenos uma perspectiva adequada pode permitir um estudo objectivo da sua natureza e significação.



No primeiro, algumas horas bastam; no segundo, é todo o largo período da história da humanidade que se torna indispensável abraçar numa apreciação de conjunto. Vejamos se nos aparece assim, ao menos nas suas linhas gerais, alguma lei à qual se subordine todo o desenvolvimento que a história nos apresenta ao longo do extenso caminho percorrido, desde o aparecimento dos primeiros agrupamentos humanos até às sociedades de hoje. Creio que essa lei existe e que pode formular-se, pouco mais ou menos, nos seguintes termos:
  • No seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários, o individual e o colectivo, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio, o individual, chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo.
In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939. Cortesia de Seara Nova


Bem-haja para Todos
JDACT