sábado, 15 de dezembro de 2012

O Deserto Habitado. Júlio Conrado. Leituras. «Uma mulher atravessa a campina. Quase uma violência, sob o sol incandescente. É Magda. Encontrarei Magda muitas vezes, na praia, na cidade, ao portão da fábrica. Na planície, agora»

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«Estou e não estou neste tribunal-miniatura, antigo, de vilória perdida no cadastro da Idade. Testemunho e viajo. De corpo inteiro, absolutamente completo, no julgamento do pastor, sou ao mesmo tempo presença e ausência. O que custa a compreender, mas é a verdade. Rujo, tremo de medo, feito juiz e réu de uma causa que se liquefaz por mil fendas paralelas. Oiço, não oiço, chega-me em surdina ou como tiro à queima-roupa a música opiniosa dos volumes com cabeça, todos colocados pelos ombros. Vim para o que eles hão-de chamar a traição. Mas, evidentemente, por razões bem diversas daquilo a que eu chamo trair. É que não são estes burgueses ávidos de sensações fortes, mas indolentes, varados de espanto e de alarme, com a coragem de apelo semelhante mal disfarçado na imperturbável expressão dos rostos e na frieza desocupada das mãos, quem por mim será traído. Tenho demasiados problemas de consciência para lhes consagrar muitos cuidados. Um deles, desses problemas, é a cobardia. Estão, como eu, apanhados na teia do número extra do espectáculo. O ritual da morte praticado a desoras no casebre perdido na campina por um rústico ciumento. A reconstituição minuciosa. Momento a não perder. Que bela fuga para o dia-a-dia sem caprichos, sem audácias, sem horizontes rasgados e felizes. Memorável data!
A vilória estremece como fêmea aluada num rito carnal de distâncias físicas anuladas. São dez da manhã, sufoca-se lá fora, as casas, desgraciosamente alinhadas e brancas, estalam como dentaduras ao sol. A cárie tomba-lhes nas paredes e as ruas não conhecem o asfalto raso das grandes metrópoles rodoviárias. Cobre-as um tapete quadriculado dessa calçada tosca, de sugestão romana, por onde carros puxados a mulas fragorosamente impressionam ainda um dobre de finados pelas velhas caravanas.
Uma mulher atravessa a campina. Quase uma violência, sob o sol incandescente. É Magda. Encontrarei Magda muitas vezes, durante o julgamento: na praia, na cidade, ao portão da fábrica. Na planície, agora. Dentro de mim, sempre. Mas na planície, agora. Estacaste à minha ilharga, Magda. Observas-me, observo-te pelo rabo do olho, embora julgues que não chego a pressentir-te. Sei que vigias a corrida que os meus olhos empreendem pela íris do céu no semicírculo devoluto. Sim, Amiga, creio no céu que arde, e pode ser este ou outro qualquer, concentrado de lume que oprime os mouchões grisalhos, fecunda e castiga os cromos da fazenda.
Vista do alto, a terra é manta, retalhos ajuntados, vista daqui arena em ordem, silêncio, chão de pólvora, mágoa, campa e lonjura. Centro, suponho, de mundos que devo tentar habitar. Para isso vieste. E talvez porque estás aí, sem arredar pé, sem fazeres um gesto que possa denunciar-te, sem maculares com palavras que seriam escusadas esse teu estudado mutismo que me gela o sangue no descampado de espigas ceifadas ardendo, tento imaginar a cidade intacta, perfeita, tento construir pedra a pedra o sonho, em cima de gretados poros de incêndio extinto, que, todavia, no ar que respiro, na pele suada, na goela sápida, timbram o alto primado do fogo, do dia, da cor, da graça.
Uma sombra perpassa. O rosto liso, de joelhos, à espera, grave e ruim, confiadamente perece espreitar o cristal da água em vertigem. Será o do homem novo? Desaparece como apareceu. Foi uma estadia breve. Sobre os plainos nascerá o homem novo, murmuro, e olho para ti, Magda, na presunção de que me ouvirás, pois não ignoro o quanto aprecias escutar tiradas revolucionárias. Desgosta-me, sim, nunca teres reparado no desprendimento com que as profiro e as aceites como boas sem um exame crítico sumário. Assim, de cada vez que sinto ter de maravilhar-te com qualquer frase quente, exagero de propósito a timidez da minha voz. Mas sempre recebes o que digo como se me habitasse um perito em motins ou um estratego da guerrilha urbana.
Amo-te, Magda, e sigo nu, por ti arranho o sexo nas silvas, rojo nos espinhos o corpo envergonhado, sinto-os fundo na carne, fazem, a seu modo, justiça, a Cidade Nova não se consterna nem se prostra ao ingresso dos aspirantes a Homem». In Júlio Conrado, O Deserto Habitado, Prelo Editora, Lisboa, *06542*, 1974.

Cortesia de Prelo/JDACT