quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo (1945-2001). «… esquina volvida, aparece o Mário Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente evidenciado pelo anexim de “observa”, com que os homens da terra o marcaram»

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«O filósofo veio à janela, olhou, de dentro para fora, e de cima para baixo, e, ao ver o frade branco, insultou-o, com muitos ralhos, com imprecações intermináveis, com maldições eternas .E, em altos berros e espadaladas várias, aparece ali naquela cena, saído de trás do reposteiro do tempo, esparvoado, o franciscano inglês Roger Bacon, a tomar partido pelo dono da casa, a quem tutorava naquele trabalho de ópticas, por sua conta desde o século XII, que não era mais que negócio de óculos e lentes de contacto...
E palavra puxa palavra, doutrina puxa doutrina, frade não deve a frade, vamos à bulha e todos ao monte, e o dominicano com o seu manto branco, muito mais sujo da refrega que o hábito castanho do franciscano. Spinoza, o judeu filósofo, agradecido, ia virar as costas para continuar a lapidar, quando ,de repente e ofegante, chega o Richard Zimler do novo mundo, para fazer a acta do ali acontecido, trazendo como testemunha cientificadora o Alexandre Quintanilha, talvez para escrever agora sobre o último cabalista de Castelo de Vide, ensinando ao filósofo qual o melhor trajecto para a sinagoga portuguesa de Amesterdão.
João III, o piedoso, apiedou-se de si e, sentado no banco da Fonte, que era o suporte de cântaros e bilhas de água ou o poiso das apeias das azémolas, com a cara escondida entre as mãos, para não ver o que deixou para o futuro, soluçava com gritos de permeio, que se ouviam a séculos de distância.
O Garcia, impressionado com aquele espectáculo dramático, deitou-me o olhar com tons complacentes, a sustentar desculpas por aquela ocorrência, rogando-me, por instantes, compreensão, e foi-me afastando daquele território, daquela cena, que mais parecia teatro vicentino do que momento azíago de declamação ocasional de papéis, previamente estudados, nas intertelas do devir dos acontecimentos.
Falava-me ele de teatro, falava eu de tragédia, de fingimentos na arte de representar na vida e das máscaras gregas de Epidauro, quando, esquina volvida, aparece o Mário Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente evidenciado pelo anexim de observa, com que os homens da terra o marcaram.
Era uma pessoa recheada de singularidades, de alto e belo espírito, que também se embevecia de belezas. De entretém, de oportunidade, ao ver-me ser solidário nesses afazeres da alma, com delicadeza nos conduziu para uma outra rua e, postando-se em frente a uma casa, de altos e baixos, disse-me que ali tinha vivido o grande dramaturgo João da Câmara, autor da comédia OS VELHOS, cuja génese tinha, como terreiro, a freguesia de Santo António das Areias e cuja acção se essenciava na reacção da população daquele povo à chegado do comboio.

Engenheiro civil, caiu-lhe, no trabalho da vida, a tarefa de ir dirigir a construção do caminho-de-ferro do ramal de Cáceres. E, nessa qualidade, tinha que retalhar os tapadões, as tapadas, as hortas e os currais, que a estrada de ferro tinha naturalmente de dividir, cabendo-lhe o odioso de ferir, com golpes de espada, as heranças avoengas ou as deixas testamentárias de muitas gerações e os códigos de honra, que o estatuto de posse foi criando no deambular dos séculos. De fina sensibilidade, o engenheiro de tudo ia tomando conta e nota, inventariando emoções e retratos de personagens, com que criou a comédia de costumes imortalizadora.
O Mário Rainho alongava-se em biografias e hagiografias, em dados contornos, enquanto eu, de espírito cada vez mais giratório, me espairecia na lonjura dos acontecimentos, para trás e para a frente dos carris do tempo, ora evocando Camilo Castelo Branco, que dizia que até os pardais se assustavam com aquele touro negro de ferro, a galgar as travessas, ora colocando o engenheiro Horta, na dianteira, a corrigir erros e cálculos do fidalgo João na estação de Caminho de Ferro da Beirã». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT