quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A descoberta da economia-mundo. Immanuel Wallerstein. «… a noção de estrutura tanto opera quanto à sociedade global como quanto aos grupos, sectores de actividade, regiões e localidades que a integram, sendo sempre o meio de apreender analítico-sinteticamente o facto social total»

Cortesia de wikipedia

«Tendo como referência a obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, desenvolvem-se três temas fundamentais:
  • a história é geográfica;
  • a história fala de uma actividade pluridimensional, mas única;
  • o passado relativiza-se no presente. A concluir, esboça-se um programa de trabalho para o novo século assente no conceito de história total.
Os descobrimentos não foram somente a descoberta de territórios longínquos pelos Portugueses ou mesmo pelos Europeus; foram também a descoberta de uma nova construção social de que estas viagens, estas rotas oceânicas, estas trocas comerciais faziam parte, a construção da economia-mundo capitalista em que todos hoje vivemos. A descoberta dessa estrutura ficou a dever-se a um grupo de investigadores, a bem dizer, um grupo de hereges, que escreveram em meados do século XX. Entre estes textos transformadores, encontra-se a obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial (1963). Magalhães Godinho oferece-nos a conclusão de mais de mil páginas no seu parágrafo de abertura, que vale a pena ler com atenção:
  • Modernidade ou medievalidade dos séculos XV e XVI: qualificações demasiado globais, de flagrante imprecisão, para nos servirem de ferramenta na análise de expansão europeia que então se processa. Pense-se o que se pensar dessa controvérsia sempre em aberto, alguns factos são incontestáveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaço, a sua maneira de sentir e de entender as próprias relações humanas é impregnada pelo número, ao mesmo tempo pela consciência da mudança; a pouco e pouco cria-se um critério para distinguir o fantástico do real e o impossível do possível; transformam-se, em complexidade contraditória, motivações e ideais; a produção dos bens multiplica-se, o mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, forma-se o Estado burocrático e centralizado de matiz mercantilista.
O mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, eis o tema que Magalhães Godinho põe em primeiro plano. A continuação do seu livro, contudo, não fala do mercado, mas conta-nos a evolução dos mapas-mundo europeus, uma viagem do fantástico ao real até que a medida do tempo e do espaço vá infiltrar-se cada vez mais em todos os aspectos da vida quotidiana. E Magalhães Godinho termina a sua introdução recordando-nos o que escrevia Tomé Pires no início do século XVI:
  • O qual trato de mercadoria é tam necessário que sem ele se non susteria o mundo; este é que nobrece os Regnos, que faz grande as gentes e nobelita as cidades, e o que faz a guerra e a paz do mundo. É hábito o da mercadoria limpo. Nom falo no meneo dela, havido em estima: que cousa pode ser melhor que a que tem por fundamento a verdade?
Magalhães Godinho chama a isto a palavra decisiva. Mesmo assim, não se trata apenas da troca de bens. É todo um sistema que se constrói. Magalhães Godinho escreveu um verbete para o 2.º volume do Dicionário de História de Portugal sobre os complexos históricos-geográficos no qual insiste que a economia se insere num complexo de estruturas, um sistema (ele não recua perante esta palavra), e acrescenta:
  • a noção de estrutura tanto opera quanto à sociedade global como quanto aos grupos, sectores de actividade, regiões e localidades que a integram, sendo sempre o meio de apreender analítico-sinteticamente (por explicação-compreensão) o facto social total.
Ora aí está! A história total apresenta-se-nos como uma visão fundamental, uma exigência, um fardo. Teremos nós podido assumir essa tarefa? É tema para discussão. Começarei com uma expressão que Magalhães Godinho utiliza no seu livro recente, Le devisement du monde (2000), ao qual dá o subtítulo Da pluralidade dos espaços ao espaço global da humanidade, séculos XV-XVI. No título do primeiro capítulo, ele fala da invenção do mundo, no seio da qual estava a dar-se, aparentemente, a formação da Europa. O mundo não existia antes do século XV? A Europa não era já uma realidade muito antiga? Não, não era, porque falar assim seria reificar estes termos descritivos, que devem, isso sim, ser reservados às realidades nos espíritos das pessoas e à substância das suas vidas». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 69, Outubro 2004, Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho, Paris, Dezembro 2003, tradução de António Sousa Ribeiro.

Cortesia de RCSociais/JDACT