quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

FCG. Aves Ilustradas. Sóror Maria do Céu. Maria Manuela Paulo. «… em geral em toda a sua obra, encontramos a defesa dos valores morais, sociais e estéticos vigentes na sociedade sua contemporânea. O seu referente ideológico principal é a ortodoxia católica na sua fase contra-reformista…»

Cortesia de wikipedia

«O divertimento proveitoso, que é uma adaptação do latim do prodesse et dilectare, é o princípio que está na base do programa didáctico geral adoptado pela nossa autora e pela maior parte dos escritores seus contemporâneos. Em as Aves Ilustradas pode detectar-se ainda a convergência de diversas vertentes culturais, que incluem a fusão da simbologia moral e da erudição, e a presença das formas tradicionais da fábula, do apólogo e do conto exemplar aliadas a formas de retórica como a prosopopeia, utilizando por vezes como base, material proveniente da Idade Média, como os Bestiários. Como sóror Maria do Céu é extremamente criativa e muito culta, consegue fazer sínteses sui generis dos modelos disponíveis no seu tempo, produzindo verdadeiras criações que, sendo estruturalmente híbridas, acabam por constituir uma unidade especial. O conceito de divertimento, podemos dizer que é semelhante ao que Freud propõe no século XX quando afirma que qualquer trabalho (ou aprendizagem) resulta muito melhor se dele derivar prazer. Nas alíneas que se seguem, irá permitir, concluir sobre a originalidade destas composições de sóror Maria do Céu, não obstante ter ido buscar aos géneros referidos alguns elementos essenciais. Foi dessa combinação de elementos já divulgados, aliados a outros novos resultantes de uma grande imaginação, criatividade e bom gosto, que resultaram as peças literárias de grande beleza e originalidade que nos legou.

A moral e a erudição
Sóror Maria do Céu viveu cerca de metade da sua vida no século XVII, (nasceu em 1658 e morreu em 1753), pelo que a sua obra reflecte as ideologias e as características nos diversos campos artísticos dominantes nesse período, denominado Barroco, que em Portugal se prolongou até meados do século XVIII. Na sua obra surgem fundidas e assimiladas as influências religiosa e pagã resultantes da Contra-Reforma, que se caracteriza por uma forte presença do catolicismo, e da cultura clássica, veiculada pelas obras dos autores clássicos amplamente divulgadas. Ana Hatherly, quando analisa a obra em prosa de sóror Maria do Céu na sua Introdução a A Preciosa, escreve:
  • em geral em toda a sua obra, encontramos a defesa dos valores morais, sociais e estéticos vigentes na sociedade sua contemporânea. O seu referente ideológico principal é a ortodoxia católica na sua fase contra-reformista, ligada à escolástica medieval e permeada de platonismo e neoplatonismo.
É notória a preocupação pedagógica que a autora revela em todas as suas obras, bem patente quando transmite os ensinamentos colhidos na ortodoxia religiosa e sobretudo no misticismo. Esta vertente cristã surge, no entanto, impregnada de referências colhidas na cultura clássica, e nos mestres seus contemporâneos, cujas obras reflectiam o culto do espectáculo e do lúdico, característico da sua época. Sobre este assunto, na obra atrás citada, Ana Hatherly diz:
  • a obra de sóror Maria do Céu afigura-se-nos como essencialmente didáctica, didáctico-recreativa. Não obstante a presença duma profunda religiosidade e até de claro misticismo em alguns casos, parece-nos que há nela mais uma visão mística do que o relato de uma experiência mística...
Os primeiros ensinamentos religiosos, colheu-os na doutrina da Igreja, nos sermões, nas vidas de santos e de figuras exemplares; os segundos, resultam da muita erudição que revela ter, excepcional no seu tempo, especialmente numa senhora que tão nova ingressou no convento. Os conventos eram locais privilegiados para a aquisição de conhecimentos, especialmente quando se tratava de uma pessoa interessada, inteligente e excepcionalmente dotada. Ana Hatherly, na sua Introdução à A Preciosa, de sóror Maria do Céu, refere:
  • No panorama da literatura portuguesa do século XVII, particularmente no campo da prosa de ficção e não obstante a sua especialização na área das narrativas alegóricas a lo divino, a obra de sóror Maria do Céu nada tem a recear do confronto com autores como Francisco Rodrigues Lobo, Francisco Manuel de Melo ou Alexandre de Gusmão [...] A sua produção, prolongando-se até meados do século XVIII, representa bem a pujança artística que o Barroco assumiu em Portugal, ilustrando nos seus múltiplos aspectos toda a riqueza e toda a variedade de pensamento e expressão que esse período abarca. Sóror Maria do Céu é, de facto, um expoente extremamente representativo dos valores morais e estéticos vigentes durante o período barroco em Portugal e na Península Ibérica.
Da assimilação da vertente moral e da erudição resulta uma hibridização que é uma das principais características do Barroco literário. Aves Ilustradas está repleta de intenções morais: são inúmeras as histórias e exemplos apresentados para comunicar ao leitor a sua mensagem pedagógica de elevado teor moral e religioso. Ao utilizar este processo, sóror Maria do Céu revela a cada passo a sua enorme cultura e erudição. Esta preocupação de citar obras de autores clássicos, no caso de sóror Maria do Céu, que era uma pessoa modesta, não seria para exibir a sua erudição, como acontecia com outros escritores cultos, mas para reforçar o valor do exemplo, uma vez que, assim, provava que ele já vinha do passado e de autores de grande prestígio. A principal finalidade de obras como Aves Ilustradas era, portanto, funcionar como veículo de ideias morais e modelos de comportamento, colhidos em obras ou testemunhos merecedores de todo o respeito e crédito. Nas Aves Ilustradas encontramos permanentemente os animais irracionais, as aves a falar aos humanos, às religiosas, procurando dar-lhes ensinamentos, transmitindo-lhes mensagens de elevado valor moral, para sua edificação e vida no convento. Trata-se pois, como vimos, de fábulas mistas, geralmente conhecidas por apólogos […].
Os apólogos de Aves Ilustradas não terminam com provérbios, mas sim com poemas em castelhano que resumem e reforçam a mensagem transmitida ao longo do conto. Também nas definições encontradas e transcritas para este género literário se refere que as fábulas são geralmente escritas em verso. Apenas na conclusão de cada Discurso encontramos um poema alusivo. Por tudo o que ficou dito, julgamos poder concluir, que Aves Ilustradas, de sóror Maria do Céu, foi escrita dentro do género em moda na ocasião, conto, fábula. Sem no entanto podermos considerá-lo como um género puro, antes podemos considerá-lo híbrido porque nele participam elementos da fábula, do apólogo e do conto exemplar, constituindo uma unidade especial. Nestes discursos encontramos sempre presente o conceito de divertimento proveitoso, conceito básico da acção didáctica adoptado por sóror Maria do Céu, nesta e em outras obras suas [...] Sóror Maria do Céu terá ido buscar certas ideias que apresentou na sua obra Aves Ilustradas a esta e outras obras medievais. Quando põe o Pavão a dar avisos à Prelada, é evidente a relação entre as características atribuídas à ave e a autoridade de que se reveste aquela religiosa devido às funções que desempenha dentro do mosteiro; no caso da Andorinha e da vigária da Casa são equiparadas as características das duas; quando refere que a Águia, rainha das aves, vai buscar ao Sol os ensinamentos que transmite através das aves, simboliza os homens de sábio entendimento; e o mesmo sucede quando utiliza as Corujas para dar um exemplo negativo. Julgamos poder concluir que obras como as que aqui foram referidas, poderão ter sido conhecidas por sóror Maria do Céu e ter estado na base do grande interesse que autores cultos como ela manifestaram pela sua utilização, nas suas obras, fazendo dos animais (neste caso, as Aves), das suas características dominantes e dos seus hábitos de vida, hábil e inteligente transposição para os dos homens, extraindo daí exemplos de conduta moral». In sóror Maria do Céu, Aves Ilustradas, Maria Manuela Paulo, FCG, Dissertação de Mestrado, FCSH, UNL, 1994.

Cortesia da FCG/JDACT